A experiência inédita

14 de fevereiro de 2016

[Por Laura Cohen]

Fazer um livro novo é sempre uma experiência inédita. Mesmo tendo publicado algumas coisas até agora, escrever do zero sempre é criar uma vida nova do zero. Eu não possuo um método padrão de escrita, mas eu me comporto mais ou menos da mesma maneira: eu encontro um tema, realizo uma pesquisa não muito profunda (pesquisar demais pode ser problemático: ficção é invenção) e tomo notas por meses antes de me sentar para escrever o texto.

Percebi há pouco tempo que meu primeiro passo é encontrar um tema. No meu romance, História da água, eu tinha o desejo claro de perseguir a relação entre irmãos e no meu segundo romance, Ainda, eu queria falar do conflito dos vivos com o passado material e imaterial. Escrevi mais um livro (que ainda não foi publicado) durante uma viagem a Israel. Este foi bem mais diferente porque eu fiquei menos de um mês tomando notas para escrevê-lo e foi uma narrativa que veio com facilidade porque foi bastante baseada em experiências reais minhas e de amigos, com muitas histórias que ouvi dos outros em um país estrangeiro. Viajei a Israel com a ideia para o livro (uma violonista que viaja e decide nunca mais voltar para casa), e o meu tema era o amor e o ódio. O livro foi bem fácil de escrever, mas está sendo muito difícil de editar por conta de alguns conflitos internos (acho que valeria um post só para essa questão, mas até disso eu estou fugindo).

Antes de tudo, o que eu escrevo não vem diretamente de uma experiência que eu vivi, mas é acrescido dessas experiências – antes de tudo, eu persigo temas. O tema é a minha forma de organizar narrativas antes de elas nascerem. Meu amigo André Malta (ainda vou falar bastante dele aqui, um grande interlocutor da escrita), que está lendo Os irmãos Karamazov, outro dia fez uma observação de que era bom “ler livros com tema”, livros que possuem uma ideia a ser abordada. Comecei a pensar bastante nisso, até encontrar a seguinte frase no livro novo do Lourenço Mutarelli, O grifo de Abdera: “Na verdade, eu penso que essa é a origem dos livros. Os livros são a tentativa do autor refletir profundamente sobre determinada questão ou tema”. Acho que quando eu escrevo um romance, acaba sendo isso – talvez o mais fundo que eu consigo ir numa questão é criar uma situação ficcional que seja similar a vida real em torno de uma única questão.

Obviamente começa em uma questão, mas o meu desejo é criar um universo inteiro em torno daquilo. Estou fazendo o meu quarto livro muito vagarosamente, um livro que escrevo desde 2013, e agora é mais uma experiência nova porque é a primeira vez que estou escrevendo sem pressa. O História da água eu escrevi em uma explosão e totalmente no escuro, e o Ainda foi um livro sofrido e incompleto que tive uma desagradável pressa para publicar, este livro novo, entretanto, já se estende por três anos e estou bem orgulhosa da minha falta de ansiedade com relação a ele.

A semente do livro que venho escrevendo desde 2013 veio de uma despretensiosa fala da professora Myriam Ávila durante uma aula. Ela disse que ia ser muito bom se algum professor resolvesse ofertar uma disciplina sobre a traição na literatura. O tema era vasto, estava em vários lugares, e seria um ótimo objeto de pesquisa. A minha curiosidade, a princípio, era puramente acadêmica. De mãos dadas com a traição, veio um novo tema: a mentira. O próprio objeto de mestrado que escolhi – um texto conhecido como Romance de Alexandre – é uma biografia ficcional de Alexandre, o Grande que teve origem no segundo século da nossa era, e que é quase um romance fantástico de tão cheio de coisas fabulosas e mentirosas a respeito de uma figura histórica.

Resolvi, então, escrever uma narrativa toda em cima das variações da traição e da mentira. Eu estava querendo ter um personagem masculino como principal – uma proposta de um coletivo de amigos escritores, dizendo que eu deveria me aventurar no mundo dos homens depois de tanto escrever no ponto de vista feminino. Depois de um tempo, percebi que o ponto de vista masculino não me era tão interessante, mas o personagem já estava criado e eu não podia fazer nada senão escrever a respeito dele. No meu livro em processo, a vida esse personagem é narrada dos seus dezessete aos trinta anos. Ele é um fotógrafo – criador de imagens, logo criador de engodos – que entra num confronto com a mentira e a traição: aos dezessete anos, ele reflete sobre a falsa morte de Vladmir Herzog exposta numa fotografia e sobre o seu tio que trai a sua tia sistematicamente. Aos vinte e poucos, fotógrafo, se apaixona por uma poeta pela qual o seu primo já é apaixonado. Aos vinte e tantos, casado e morando no estrangeiro, tem uma longa conversa com uma prima que foi abandonada pelo pai. Aos trinta anos, investiga a respeito de um segredo que a sua irmã mais nova insiste em guardar, enquanto sua mulher está grávida de uma menina.

Mas não fiquei apenas nesse personagem fotógrafo: o livro foi crescendo e possui outros personagens e outros narradores, todos dentro da mesma família do personagem que guia a linha narrativa. O que era para ser um livro sobre a mentira, passou a ser a saga de uma família de classe média em Belo Horizonte através do tempo. Temos a prima de dezessete anos que perde um irmão no Uruguai e se apaixona por um homem mais velho que trai a confiança dela; temos a irmã do personagem principal que é atriz – outra criadora de personagens mentirosos – e que acaba sofrendo de uma doença misteriosa: o corpo traindo a si mesmo, temos um suicida.

Tenho muitas notas (a foto que ilustra o post é dos cadernos que estou usando para escrever o texto desde junho de 2013), quase duzentas páginas de word, mas mais do que isso eu tenho dúvidas. Nos próximos posts do blog eu gostaria de falar sobre o meu percurso fazendo esse livro: a pesquisa que precisei fazer para criar personagens e situações, todas as vezes em que desisti da narrativa, a forma como escrevi um conto e resolvi que ele não seria um conto independente, mas a parte final do livro.

O que eu quero dizer aqui é que quando a gente começa a escrever, a gente não tem muito ideia de onde vai parar: estou com a impressão de que vai ser um livro de trezentas páginas, mas quem disse que no fim eu não vou odiar tudo e cortar o livro pela metade? Eu posso começar com o tema, mas quem disse que ele fica claro para o leitor no final? A experiência inédita é o não saber dessas vozes ficcionais que nos chamam para a escrita: mesmo tendo o mérito de ir até o fim em um dado momento, e mesmo escolhendo um tema, criando personagens, e fazendo pesquisa, perseguindo um tema, ainda estou no escuro. Não sei como isso vai acabar, e no fim, se eu tentar explicar o que eu fiz, posso falar da prática da escrita, muita coisa ainda vai ser um mistério.