Escritor que escreve livro

11 de janeiro de 2016

[O encavalamento de poemas no livro Muertes y maravillas do Jorge Teillier é um exemplo do que eu não quero em um livro de poemas]

Laura Cohen

Durante a minha graduação, fui dar uma passeada no curso de restauração e fiz uma matéria que devia ser uma opção no curso de letras – História do livro. Resumidamente, trata-se uma disciplina que estuda como o objeto-livro (com suas variações anteriores e posteriores) é composto, usado, editado, manuscrito, impresso e até mesmo destruído ao longo do tempo. A professora, Ana Utsch, dizia uma coisa que ficou na minha cabeça: escritor não escreve livro, escritor escreve texto. É verdade: a maioria dos autores faz só o texto do livro, e depois disso somos amparados por uma pequena multidão de atividades no âmbito do texto (preparação, copidesque, revisão) e no âmbito do livro (ilustração, diagramação, encadernação).

Ultimamente tenho gostado de uma coisa que tem acontecido, uma autonomia dos desejos dos escritores para compor o objeto-livro – meu caso com o História da água, que só dei dor de cabeça para todo mundo, ou do meu amigo Marcos Assis, que com ajuda do amigo designer Matheus Ferreira, fez o seu Ano do chumbo, um livro todo feito à mão e encapado de lixa d’água, ficou coisa linda. Isso só para citar dois. Por outro lado, eu ando gostando muito de ser escritora que escreve texto, terceirizando as questões gráficas. Mas faço assim apenas porque tenho plena confiança nas pessoas que estão me publicando: eles sabem que eu amo coisas bem simples e fontes serifadas, por exemplo. Acho que se eu fosse publicada por outra editora no momento, eu ficaria igual a um urubu rondando o projeto gráfico, o tamanho da fonte, a ilustração da capa.

Acho que nós escritores podemos escrever só o texto sim, mas acho que é necessário ter um pouco de consciência a respeito do objeto livro. Por exemplo: vivo recebendo textos digitados no word sem nenhuma consciência de que aquele texto torna-se objeto, ou pior: me mandam o texto no bloco de notas (alô, pessoal, 2016, ok?). Recebo livros de poesia cujos poemas estão colocados um após o outro – insisto, nesse caso, que deveríamos colocar um poema por página, para dar um “respiro” entre eles. É horrível pegar um livro de poesias cujos poemas vão se encavalando – começa um poema e logo depois outro poema, e depois mais outro poema até o fim. Muitas editoras acabam assumindo isso para economizar papel, daí o livro de poesias acaba ficando com certo aspecto de dicionário, não dá para ler com o coração tranquilo. Também é triste quando recebo o texto e não há o nome do autor na página – a gente precisa pensar até como vai ser o nosso nome de escritor porque ele também é importante.

O que eu mais gosto de fazer (e sugiro) é que a gente componha o texto como se estivesse compondo um esboço de livro – fazer uma capinha com o nome do livro e o seu nome embaixo, depois uma página inteira para epígrafe e uma página inteira para a dedicatória (se elas existirem), em seguida, o texto. Se eu quero que entre os capítulos exista um título, tenho que pensar se ele vai lá no topo da página ou se o título vai aparecer sozinho página individual. Se for numerado, deixar os números segundo o meu desejo. Acho que se eu escrevo “capítulo um” dá certo ar antigo, muito formal, se eu escrevo “um”, a coisa fica meio modernosa, se escrevo “1”, estou sendo minimalista e discreto, e se eu escrevo “I”, estou numa onda meio clássica, daí tenho que pensar se aquele capítulo numerado tem um aspecto formal, moderno, se precisa ser discreto ou mais clássico. Isso tudo faz diferença na composição do texto, mesmo que seja uma diferença pequena, é uma questão de ritmo e continuidade. Outra coisa a se pensar são os livros que não são numerados e cujos os capítulos recebem apenas nomes: fiz assim no História da água, capítulos cujos títulos se repetem, mas que não apresentam números porque não é um livro linear, mas um livro que se embaralha no tempo.

Estou dizendo isso porque acho que a gente precisa ter alguma autonomia na forma – não dá pra pensar que a forma só influi no conteúdo, mas a forma é parte do conteúdo – e a gente consegue chamar a atenção fazendo livro bonito (eu sei que vocês entram nas livrarias e ficam lá cheirando os livros da Cosac Naify, julgando o livro pela capa). Escrevendo o texto como se fosse um livro, a gente pode ajudar o designer e o designer do livro pode acabar ajudando a gente. Da mesma forma que escrever é uma questão de desejo, publicar pode ser uma questão de desejo.

P.S.: Se você se interessa em publicar não só no formato livro, confere o nosso novo curso Intervenção urbana e outras publicações independentes!