Aqui, agora: sobre No coração fosco da cidade, de Juliana Ramos.

26 de novembro de 2018 - Laura Cohen

Fiz pouco trabalho editorial em 2018, mais concentrada em alguns projetos pessoais e uma necessidade de descanso, depois de defender um mestrado e publicar um livro, dois processos complicados. Trabalhar pouco, para uma capricorniana como eu, é bem difícil, e o único livro que editei e foi impresso esse ano quase não precisava de edição de tão perfeito que se encontrava... No coração fosco da cidade, de Juliana Ramos, chegou nas minhas mãos através da Flávia Péret, e eu só aceitei porque a Flávia insistiu muito, dizendo que era um livro maravilhoso. E era: o trabalho de Juliana é feito com a perfeição do esmero.

Uma grande potência do livro é justamente esse diálogo interno que os poemas executam entre si, criando uma paisagem comum. Sugiro que a primeira leitura seja feita em sequência, do começo ao fim, uma vez que temos a tentação de ler livros de poemas como se fossem oráculos, abrindo em uma página qualquer. No coração fosco da cidade é quase um romance em fragmentos, quase conta uma história, e coloco ênfase nesse quase imperfeito e lacunar: trata-se de um livro baseado em faltas, buracos e falhas.

Quando li pela primeira vez os originais de No coração fosco da cidade, uma frase em especial me soou muito potente: “o tempo caindo dos relógios”. Só depois de muitos meses com a frase do poema Limiar (as chaves) ressoando na cabeça, compreendi que nela havia, de fato, uma chave de leitura para todo o livro de estreia de Juliana Ramos.

No coração fosco da cidade discorre, superficialmente, sobre a cidade, o centro, a periferia, a paisagem urbana, o deslocamento e as suas lógicas (ou ilogismos). Por isso, entendemos, primeiramente, que este é um livro sobre relações com o espaço. Contudo, temos que lembrar que o espaço não pode ser desvinculado de sua categoria siamesa, o tempo.

Compreendo, também, que é um livro não sobre qualquer tempo, mas o tempo presente. Existe um estar aqui/estar agora inquebrável em cada evocação. A imagem “o tempo caindo dos relógios” continua sendo uma das minhas favoritas do livro: uma passagem em câmera lenta. Seu absurdo vem do efeito ininterrupto causado pelo verbo no gerúndio, caindo... caindo... caindo... segundo a segundo.

Atenta ao tempo, segui o percurso de Juliana e percebi como o livro é repleto de verbos no presente. Aqui, o ser aparece como “é”, como “são”, um livro pleno de hoje, de agora. O agora é um sentimento urgente e com presença, enquanto o futuro massacra em rodas de escavadeira. A própria imagem da ruína, um objeto-espaço do passado que foi, aos poucos, comido pelo tempo que avança violentamente, é evocada através de uma ausência: “não existem ruínas na cidade onde tudo vira entulho”, no poema cujo título é, ironicamente, Demolidora mundo novo – uma compulsão das cidades por renovar, reconstruir e por isso, destruir. Se tudo é demolido, é demolido através do verbo presente, mostrando uma mudança contínua. O espaço não para.

Sobre a dificuldade de encarar o presente sem pressa em um tempo repleto de futuro, destaco o poema Escada rolante, que cito aqui integralmente:

quando o tempo de um bocejo

não couber em curtos passos

e o peso de um suspiro

te encontrar na contramão:

mantenha-se à direita

utilize o corrimão

A personagem é mais lenta do que exige o mundo, vivenciando bordas e não centros: a imagem da periferia, dona de outro tempo, é a imagem do que muda vagarosamente. Existe uma dimensão política nesse descondicionamento das leis urbanas: “o centro se faz pelos cantos”, como lemos ainda no poema Limiar (As chaves), uma dimensão que nos faz olhar para fora, para nosso próprio espaço-tempo.

No entanto, o tempo da natureza se encontra também desregulado, como no poema Pequeno manual de desaprendizagem: “Os galos do meu bairro desaprenderam a hora de cantar. Eles têm razão. Eles sabem que à margem de uma metrópole, seu canto não mais significa”. O poema finaliza com uma frase certeira: “só me interessa o canto distraído”. O canto distraído, o tempo próprio de si mesma, a medida precisa das coisas sendo subjetiva, e não levada pela multidão.

No entanto, a pressa da metrópole não se contrapõe, mas se funde ao tempo mais pausado e doméstico da periferia. Estamos aqui, é demorado estar aqui, é preciso paciência, é preciso olhar pela janela: “o trajeto é longo e desnecessário/os dias são muitos e as horas/cada vez mais curtas”, evoca-se. Pensando no número dos ônibus, a narradora fala da ilógica numérica das linhas de ônibus: “e os números que nada dizem/ 322, 080 – nunca vi o 001”. As cavalgaduras dos versos parecem corrigir ironias, deixá-las no ar:“a grande são Paulo é um grande acidente/ geográfico”,

Contínuo, também, é o coração, essa força que não para, evocado com tanta frequência nos poemas.Colocar o coração no meio do turbilhão violento de uma cidade é uma forma de movimentar pontos de vista. Flávia Péret, que também preparou esse livro (o nome dela não consta na ficha catalográfica, deveria constar, falha nossa!), em nossas conversas, disse da importância do coração: uma palavra clichê na poesia, das que devem ser utilizadas com cuidado. Juliana, dialogando com outras poesias, outras formas de escrever, cria um coração próprio, fosco, porém pulsante e vivo.

Gostaria também de falar um pouquinho do projeto gráfico: a Elza Silveira, nossa editora, gostou muito do poema Daquela estrela a outra, especialmente dessa parte: “são mais distantes umas das outras, as estrelas; mais distantes de nós, que em vão tentamos vê-las quando as luzes da rua nos ofuscam e nos tornam insones”. O papel craft foi um desejo da própria autora, e nesse caso me pareceu muito bom: reparem que temos três estrelas na frente do livro, mas se vocês procurarem em outras partes das capas, poderão encontrar e contar outras estrelas ocultas, que se confundem com as fibras do papel.

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O lançamento de No coração fosco da cidade será amanhã às 19h, na Livraria do Belas (Rua gonçalves dias, 1581 - cine Belas Artes) - Belo Horizonte/MG. Vai ter um bate papo com a Flávia Péret, com minha mediação.

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Laura Cohen Rabelo publicou os romances História da Água (Impressões de Minas, 2012) e Ainda (Leme, 2014), o livreto de poemas Ferro (Leme, 2016) e o romance Canção sem palavras (Scriptum, 2017). Mestre em estudos literários pela Faculdade de Letras da UFMG, é idealizadora e coordenadora do projeto Estratégias Narrativas, onde ministra cursos e ateliês de produção literária. Faz parte da coordenação do selo Leme da editora Impressões de Minas.

Laura Cohen é escritora. Formada em letras e mestre Estudos Literários pela UFMG, publicou os romances História da Água (Impressões de Minas, 2012) e Ainda(Leme, 2014) e Canção sem palavras (Scriptum, 2017), Caruncho (no prelo, impressões de minas, 2022) e as plaquetes de poesia Ferro (Leme, 2016) e Escrever é uma maneira de se pensar para fora (Leme, 2018). Seu romance Caruncho está com lançamento previsto para o segundo semestre de 2021. Foi vencedora do segundo prêmio de literatura Universidade Fumec, em 2011, e em sua edição de 2009, obteve o terceiro lugar, publicando nas duas edições da coletânea Da Palavra à Literatura – Narrativas Contemporâneas. Faz parte da coordenação do selo Leme da editora Impressões de Minas, editando e preparando livros de diversas autoras e autores. Em 2019, participou do ciclo Arte da Palavra do Sesc, dando oficinas em diversas cidades brasileiras. (foto: Bianca de Sá)