Crise, trava, bloqueio, hiato, branco

20 de maio de 2021


Eu vejo muita importância nas crises de escrita. Não vim aqui louvar um suposto sofrimento romântico do artista, porque não acredito que criar tem que ser algo sofrido sem medidas: tem as questões de um trabalho que mexe com nossas subjetividades, claro. A crise, na verdade, teria que ser um momento de teste e revisão da escrita e, para isso se dar, é preciso ter amparo de nossos pares em busca de entendimento e saídas. Ficar sem escrever e sem criar tem sua importância: um tempo para negociar com o vazio. Mas se há a coceirinha da escrita, as vozes das musas, o prazo e a escrita ainda não acontece: eis o problema.



Nesse momento, pode haver o chamado bloqueio criativo, a trava: sentar-se para escrever e nada sai, e até mesmo pode haver um ódio pelas ideias, uma ojeriza pelo ato da escrita. Para isso, alguns caminhos possíveis:



Escrever é uma questão de desejo: Às vezes digo aos meus alunos que eu, como editora e profissional de escrita literária, posso dar conta de questões de texto, mas às vezes a questão do desejo tem que ser tomada com muito cuidado e até partilhadas. O primeiro procedimento para sair do branco é justamente questionar onde está o desejo. Estamos escrevendo da maneira que acreditamos? Quero escrever isso que estou escrevendo? Quero escrever isso da maneira que eu estou escrevendo? O próprio texto pode te dar essa resposta. Há, também, um milhão de coisas que bloqueiam nosso desejo, e é importante olhar para elas. Tem gente que não consegue trabalhar com uma mesa desarrumada, para dar o mais besta dos exemplos. Pensar em rearranjos da vida também é bom: conheço pessoas cuja escrita cresceu em momentos em que o desejo foi destravado ou posto sobre a mesa. A psicanálise sempre me ajudou a desembolar coisas que eu queria escrever, desistir das que eu não queria e enfrentar as que eu tinha que terminar. Não sem sofrimento, mas com mais compreensão.



Papelaria: Desligue o computador, coloque o celular no silencioso e vá à papelaria do seu bairro (ou visite a papelaria on-line em tempos de peste). Acho que vale comprar um belo caderno novo. Inclusive, duas poetas que muito admiro dão essa dica dos cadernos: Angélica Freitas, nessa entrevista que fizemos com ela, dispara: compre um caderno! E a Estela Rosa dá uma oficina em que ela manda você comprar o caderno mais feio que você encontrar para não ter dó de escrever. Pense nos materiais que você usa: eu mesma sempre prefiro caneta. A tinta da caneta flui e pode ser rasurada, o lápis risca e pode ser apagado: apagar nem sempre é uma boa ideia num momento de branco!!! É prazeroso mudar esses instrumentos. Desenterre do seu escritório aquele bloco de papel colorido. Escreva em fichas catalográficas ou em papel de rascunho. Acho, inclusive, que minha escrita melhorou depois que comprei um teclado novo para meu computador. Nesse barco, vou dar uma oficina prática em junho no nosso vizinho ESPAI que fala justamente sobre essa questão da superfície que escolhemos para escrever e suas possibilidades. Para saber mais ou se inscrever, aqui.



Leitura: quando eu fico chata com a criação, eu costumo reler muito. Buscar aquelas autoras e autores que me formaram como escritora, retornar ao meu suposto zero, o lugar de onde veio minha vontade de escrever. Tento não focar mais no ato da escrita por um período, mas curtir muito a leitura. Gosto muito de ler poesia nesses tempos, sempre uma mudança brusca de linguagem ajuda a olhar os problemas por outro ângulo, e colocar os pés nas teorias. Também vale experimentar ler autores que você jamais leria, ou participar de leituras em conjunto. Tem um poema do Drummond ao qual eu sempre volto, Procura da poesia: ele já vai te dar umas dicas do que não fazer. Você pode partir dele, obedecendo ou não.



Escutar: Meu objetivo, como autora, é me tornar um grande ouvido. Escutar sempre me tira do buraco. Não só música (meus romances sempre partem de músicas, certo), mas escutar histórias de pessoas. Por mais que estejamos isolados, acho legal ouvir, pedir histórias. Uma das minhas maiores ferramentas de trabalho durante o isolamento tem sido o áudio de whastapp: histórias de amigos, fofocas quentes, recebi até áudios autobiográficos de um professor. Por aí, está cheio de gente querendo contar histórias, e às vezes as histórias dessas pessoas podem comunicar com o que você tem a dizer. Acho importantíssimo sair da nossa voz e nos apropriar da voz das pessoas. Eu gosto, inclusive, de TRANSCREVER LITERAMENTE as coisas que as pessoas falam: ganho sotaques, modos de dizer, de construir frases.



Escrever outra coisa: Acho um troço tremendamente aborrecido escrever um texto só. Fico pulando de textos em textos, e às vezes a solução para o texto problemático está no texto gostosinho de escrever. Não é traição, vá em frente. Mas a gente tem que lembrar sempre que o texto iniciado precisa, em algum momento, ter fim.



Dar uma volta, caminhar, tomar um banho: Acho que algumas atividades físicas ajudam muito a destravar textos pontualmente. Isso funciona bem para eventos de travas em que eu já tenho alguma ideia, mas preciso de alguma coisa a mais para complementar o quebra-cabeças. Tirar o pensamento do pensamento e levar para o corpo movimenta o texto.



Por mais que sejam doloridas, as crises acontecem. É nelas que a gente coloca em teste a escrita. Mudar de estilo, voltar o corpo para o lugar, não pensar em escrever. Bom lembrar que dessa crise, dessa cisão com o que acabamos de fazer, que a gente vai parir o novo, eventualmente.