O que li n°5: abril e maio

09 de junho de 2020


Comi mosca, trabalhei demais, comprei livros na promoção doida da 34, agora vim falar dos livros que li em dois meses e não em um só.



CONTOS




Surtos urbanos – Vera Albers


Rolou uma promoção na 34 e eu me propus a comprar uns livros
dos quais eu não tinha ouvido falar e tive deliciosas surpresas nesse sentido.
Esse pequeno livro de pequenas narrativas dessa misteriosa autora sem
biografia, sem local e data de nascimento (sim, procure e você não vai achar) é
uma joia para quem gosta de contos. Há uma variedade de linguagens e temas
espantosa aqui, mas normalmente são histórias de pessoas em pontos de crise
(como o Dostoievski faz tão bem em muitas páginas, aqui os contos têm no máximo
5 páginas...), narrados em vários tipos de vozes. Um livro excepcional – que
sorte a minha de o ter encontrado e poder dizer isso a vocês. Ela me lembra
bastante uma das minhas escritoras favoritas, Teresa Veiga.





Alberto Martins – A história dos ossos.


Este livrinho lindo é composto de dois contos: o primeiro,
o cão no sótão, fala da loucura (uma loucura misturada à escrita) de um
irmão narrada por outro irmão. O segundo, A história dos ossos, sobre um
filho exumando os ossos de um pai. É maravilhoso como aqui há um encontro total
de gêneros: o texto dramatúrgico, o texto poético, o ensaio.



ROMANCES BIOGRÁFICOS (?)




A invenção da solidão – Paul Auster


Quando você digita CABULOSO no google aparece a foto desse
livro. Brincadeiras à parte, temos aqui dois ensaios literários do Paul Auster,
que parecem formar um romance – não sou muito fã dele, mas esse livro eu adorei
demais. Escritos logo após a morte de seu pai, um homem de natureza difícil e
misteriosa, Auster começa uma investigação a respeito de sua família. Começando
com a grande casa que o pai ocupava, até chegar em uma história misteriosa e
surpreendente a respeito de sua avó. O formato do livro é super interessante:
parágrafos narrativas e reflexivos, às vezes longos, mas na maior parte do
tempo curtos. Saca só: “Não há nada mais terrível, aprendi então, do que ter
que encarar os objetos de um morto. Coisas são inertes: só têm sentido em função
da vida que faz uso delas. Quando a vida termina, as coisas mudam, embora
permaneçam iguais. Estão ali e no entanto não são mais: fantasmas tangíveis,
condenados a sobreviver em um mundo ao qual já não pertencem. O que pode se
pensar, por exemplo, de um armário cheio de roupas silenciosamente à espera de
serem usadas de novo por um homem que não virá mais abrir a porta?”.





Peste e cólera – Patrick Deville.


Lá vai mais uma dessas leituras para a pandemia: a biografia
lindamente romanceada do Alexandre Yersin, a primeira pessoa a descrever o
bacilo da peste. Deville chama esse tipo de romance de “sem-ficção”, e acho que
é bem por aí, apesar de, em terceira pessoa, haver muita coisa que parece mais
imaginada do que propriamente acontecida. É um livro doce, emocionante, que
coloca Yersin um pouco como herói. Mas é um pesquisador sui generis:
médico, se recusava a cobrar dos pacientes que não podiam pagar, mudava de
assunto nas pesquisas e de interesse rapidamente, às vezes sem concluir muitas
coisas, passou boa parte da vida no Vietnã. Inclusive, é um livro que dá
vontade de viajar, e conhecer precisamente o Vietnã, descrito como o paraíso na
terra. Um bom livro para nós, que esperamos uma vacina e um remédio para o
covid-19: a gente precisa ser bem paciente em relação à ciência, e dar aos
pesquisadores aquilo que eles precisam. Olha que lindo: “Geralmente, fala-se da
história das ciências como de uma grande avenida que levaria direto da ignorância
à verdade, mas isso é falso. É antes um emaranhado de vias sem saída em que o
pensamento se perde e se entrava. Uma compilação de fracassos muitas vezes
risíveis”.



ROMANCES





Tarás Bulba – Nikolai Gógol


Eu estava com saudade de ler literatura russa, e para
escapar do meu Dostoiévski costumeiro, peguei um Gógol meio sem saber do que se
tratava esse livro. Dois filhos voltam do colégio interno e o pai, o Tarás que
dá nome ao romance (um homem grande, gordo, bruto), resolve levar os meninos
para viver com os cossaco e, assim, aprender a guerra. É um livro meio cômico,
meio trágico, às vezes divertido, às vezes repugnante, e com certeza uma das
narrativas mais violentas que eu já li sobre conflitos de costumes, tradições e
desejos.





Vertigem – W. G. Sebald


Sempre quis ler o Sebald, mas só agora tive coragem de pegar
um. Não sei por que, mas sempre achei que seria uma leitura difícil e maçante,
mas na real é fluida, divertida, belíssima. É difícil explicar o que é esse
livro, porque ele se perde entre o ensaio, o relato de viagem, o romance, e
para deixar o caldo mais grosso, o livro é cheio de imagens que não são meras
ilustrações do narrado, mas que também são texto. No fundo, acho que é uma
narrativa sobre o tempo e, como diz o próprio título, sua vertigem. Olha só:
“Quanto mais imagens coleciono do passado, eu disse, mais improvável me parece
que o passado tenha de fato ocorrido dessa maneira, pois nada nele podia ser
chamado de normal: a maior parte dele era ridícula e, quando não ridícula,
aterradora”.





O homem sem doença – Arnon Grunberg


Olha, não sei se eu devia ter lido esse livro na quarentena,
mas li e amei. Desgraçou minha cabeça total. Trata-se de um romance kafkiano
tanto no tema quanto na secura da linguagem. É a história de Sam, um jovem
arquiteto suíço filho de uma mãe suíça e um pai indiano, que vai ao Iraque
fazer um projeto de uma casa de ópera. Sam tem uma namorada e uma irmã que tem
uma doença degenerativa, que aos poucos vai matá-la, por isso ele é o homem sem
doença... Se você se interessou, não procure saber mais que isso: não ligo para
spoilers de uma maneira geral, mas um spoiler atrapalha um pouco a leitura
desse livro, e a orelha do livro já é uma metralhadora de spoilers (porra,
Rádio Londres!!!). Uma narrativa que expõe questões do totalitarismo e da
democracia. Ah, e é uma leitura tão viciante que fui dormir às 2h da manhã um
dia porque não conseguia parar de ler.