O que li nº 4, março/2020

06 de abril de 2020

CONTOS

Gente melancolicamente louca, Teresa Veiga. Tinta da
china, 2015

Teresa Veiga é uma das minhas autoras preferidas; infelizmente é uma autora que publica pouco. Por isso, acabo “economizando” os livros dela: este, de contos, li tão devagar que suspeito ter demorado dois anos para ler tudo. Até cheguei a reler alguns contos. Acho que as histórias do livro de contos exploram magnificamente o humor, ponto forte da escrita da autora. Aqui, temos contos mais longos, que permitem muito bem a exploração de personagens: são pessoas que convivem com algum tipo de aristocracia ou superioridade simulada, e através das histórias, fica exposto claramente o ridículo e o absurdo de certas situações que envolvem os artifícios da aparência. A linguagem da Veiga é algo a ser notado também: barroca, descritiva e brincalhona, suas palavras simulam uma escrita coberta de pó, mentindo ser mais antiga do que realmente é.





A fúria, Silvina Ocampo. Cia. das Letras, 2019.


Quando comecei a ler esse livro, eu queria gritar MEU DEUS QUE LIVRO IMPORTANTE COMO ESSE É O PRIMEIRO LIVRO DESSA MULHER A CHEGAR AO BRASIL APENAS EM 2019? Pois é, o machismo impera, Sras e Srs: os contos de Silvina, para mim, são lidos fechando o triângulo da amizade literária entre ela e Borges e Bioy Casares (seu marido, no caso), e faz muito sentido pensar que são contos que podem conviver entre si. Os contos da Ocampo me lembram um pouco os contos da Fagundes Telles – só que o ambiente é mais assustador, as crianças são más (viva a maldade infantil! Ela existe! Falemos dela!), as mulheres são bruxonas; e existe um fantástico desconfortável por aqui, talvez por ser realista demais, possível demais. Menos delírio e mais assassinato. Com contos breves e crus, acho que a sinceridade é a coisa mais perturbadora dessas narrativas. Nenhum sentimento fica oculto, sendo ele escrito ou não em palavras.



ROMANCES/NOVELAS



Eles estão aí fora, Wander Piroli. Ed. Leitura, 2006




Esse é o único romance publicado de Piroli, uma publicação feita após a morte desse autor de contos que eu amo tanto. As coisas do Piroli são uma delícia de ler: velozes, críticas, ácidas. Li esse em um par de dias: sobre um homem casado, pai de dois filhos, com um emprego em um banco, dono de uma rotina lamentavelmente estável, tediosa. Nenhum sonho, talvez eu até poderia dizer: nenhum desejo e muita ansiedade. Aliás, é um dos livros que melhor descreve a ansiedade, para mim. A criação do personagem central, Rui, é fantástica. Veja uma das falas dele: “Pensei: ‘viver é um negócio perigoso’. Não citei o nome do autor, se é que ele existe. Tinha visto a frase num anúncio. De carro?”. Bom, não é? O estilo dele lembra um pouco o do Lourenço Mutarelli: rápido, preciso, cáustico. Só é uma pena que, por ser um romance póstumo, não esteja tão bem editado.



Uma morte muito suave, Simone de Beauvoir. Nova
Fronteira, 2020.





Eu queria, apesar do meu ranço com a literatura francesa, começar a ler a Beauvoir pelos romances. Por sorte, ela não tem nada do que me irrita na literatura francesa: é um livro que suga nossa atenção, com um estilo seco e analítico. É impressionante como Beauvoir extrai tanta reflexão de coisas banais... É a grandiloquência do banal. O livro começa com uma data, em 1963, quando sua mãe escorregou e quebrou o fêmur – o que dá início a um longo processo de cuidado e morte, narrado com precisão e um carinho comovente. A narrativa extrai da mãe o papel de mãe puramente e a transforma em uma mulher apenas, analisando suas questões pessoas, seus problemas com as filhas e a sociedade; e também sobre a falta de humanidade de alguns médicos. A mãe da Beauvoir é uma figura deliciosa! Livre, bastante carismática, repetidas vezes ela diz: “gostam de mim porque sou alegre”, e é verdade, a alegria de viver faz bem nesses tempos difíceis. Entretanto, estando em quarentena e lidando com o perigo de morte, esse livro deu uma desgraçadinha na minha cabeça. No entanto, acho um belo presente para nós, filhas de mães. Um trecho lindo para nós, que estamos e vamos passar por lutos durante o covid-19: “É inútil pretendermos integrar a morte na vida e conduzirmo-nos de maneira racional em face de uma coisa que não o é: que cada um se vire como possa na confusão de seus sentimentos”.





O duelo, Joseph Conrad. Grua, 2019.


Eu adoro histórias de duelos! Tema muito presente da literatura europeia e russa do fim do séc. XIX e início XX, a exposição de um hábito que vai morrendo. Já li o que Tchekhov e Nabokov escreveram sobre os duelos; nessa coleção tem três, e quero ler todas, e penso em futuramente escrever uma história de duelos, a maior estupidez, na minha opinião, da masculinidade. Conrad, com sua linguagem impecável, narra a história de um duelo entre dois oficiais franceses que durou anos e anos no contexto das guerras napoleônicas. Há, nas entrelinhas da rixa pessoal que começa por um motivo estúpido, algo que envolve a política de amar o imperador... bem atual, não é mesmo?



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Laura Cohen é escritora e editora. Formada em letras e mestre Estudos Literários pela UFMG, publicou os romances História da Água (Impressões de Minas, 2012) e Ainda (Leme, 2014) e Canção sem palavras (Scriptum, 2017) e as plaquetes de poesia Ferro (Leme, 2016) e Escrever é uma maneira de se pensar para fora (Leme, 2018). Faz parte da coordenação do selo Leme da editora Impressões de Minas. (foto: Bianca de Sá)