[Por Laura Cohen]
Quando a Carolina chegou ao ateliê de escrita que coordeno aqui no estratégias, ela veio e manteve uma postura muito precisa – uma postura de humildade e plena franqueza. Ela chegou dizendo que escrevia poesia, e desejava escrever mais, mas não sabia nada sobre escrever poesia. Sempre interessante e corajoso esse ato de fazer sem saber mais ou menos como fazer, um fazer intuitivo por imitação, que é o começo da vida de muitos escritores.
O que ela fez no ateliê não foi muito diferente do que todos fazem, quase um mantra da casa que eu repito com exaustão: encontrar o próprio estilo e desafiar o próprio estilo. Carol levou para casa livros de poesia que achei que tinham a ver com ela – e às vezes tinham, às vezes não tinham. Gostava da franqueza com que ela lia e me devolvia livros: “deste gostei, deste não gostei, este me ajuda, este não me ajuda”. Desafiei-a a escrever prosa – tentou muito bem, viu que não era aquilo, voltou para o outro lado, tão dela. Foi aprendendo as potências da poesia: a potência de espalhar as palavras pela página, a potência dos sentidos suspensos, a potência de falar pela metade.
Nesta prática, vejo um momento divisor de águas para a poesia da Carol – trouxe um poema que tinha feito certo sucesso nas redes sociais, e em seguida nasceu um poema com a palavra vrás. Junto com as colegas, Carol descobriu que um dos seus modos de fazer poesia era justamente isso: vrás, a onomatopeia repleta de imagem, um sentido difícil de traduzir para outra língua ou outro contexto da “lacração” que não o nosso. Acho que é um livro que ajuda a inventar e tornar esse termo eterno.
Ela escrevia um ou alguns poemas por semana, e juntas mexíamos neles: vrás virou um adjetivo para uma categoria daquela arte, poemas que eram vrás entravam no livro, poemas que não eram vrás ficavam de fora. O que é vrás é mais difícil de explicar. Relendo o livro aqui, depois de um bom tempo sem tocar nele, percebo que vrás é uma mitologia política, vrás é fábula, vrás tem protestos e enigmas com certo humor reflexivo, vrás tem corpo. Vrás é uma brincadeira muito séria.
Acho que durante todo esse processo, a Carol foi bastante independente, e do não-saber extremo, ela soube o que ela queria e o que ela não queria. De vários poemas, fomos cortando e cortando, até o dia em que ela viu o arquivo e exclamou: “nossa, como o vrás ficou magrinho”. Deixou o ateliê com o livro pronto e quando estávamos encaminhando Vrás para a edição, ela me mandou alguns e-mails oscilantes, dizendo que estava achando ora bom, ora horrível. Todos nós passamos por isso, mas foi bonito ver a simplicidade com que ela tratou a questão em seguida: cortou, costurou, mandou para mim e para a editora dizendo: é isto – e recebi um livro mais maduro, exato e corajoso. Distante dela agora, não sei dizer como estava – se morrendo por dentro, se satisfeita, mas fico feliz de ter esse livro tão bonito, todo Vrás, nas minhas mãos, um trabalho genuíno.
Cito aqui dois poemas amostra-grátis que me agradam bastante. O primeiro, ela me disse ter retirado de um depoimento que recebeu durante um trabalho, aberto com esse signo preciso da travessão, mostrando que vrás é também o poder de trazer falas outras com afeto; e o segundo, um dos meus favoritos, simples e precioso, uma descrição dolorosa do que é ter uma enxaqueca.
belo horizonte, 2015.
– se escorpião tem buraco
se até inseto tem recinto pra pousar
não posso eu
[bicho esquisito]
ficar sem
espaço
pra
morar
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enxaquecações
maldita luz
essa que me cega os óleos
esparramados
em vão
A nossa Carol é a Carolina Spyer, e lança o seu livro Vrás na quinta-feira próxima, dia 23 de junho na livraria Usina das Letras do cinema Belas Artes, às 18h30. Aguardamos vocês lá!