A imaginação, as mulheres e o poder

19 de setembro de 2017

[Por Flávia Péret]

1.

Sou mulher e desde adolescente tinha o sonho de ser escritora. Aos 16 anos, meu escritor favorito era um homem, Rubem Fonseca e naquela época eu acreditava que para ser escritora era preciso imaginar personagens como os que Rubem Fonseca inventava: homens inteligentes e destrutivos, infiéis, mas também apaixonados, instáveis emocionalmente mas, sobretudo, personagens excessivamente masculinos. Nos livros que lia, nenhuma pista de certa ambiguidade de gênero, nenhum indício de que as pessoas, as mulheres, mas também os homens, podem resistir a certas formas (impostas) de ser. Demorei quase 20 anos para entender que não queria escrever sobre personagens masculinos. Não tenho interesse em inventá-los. E, durante muitos anos, acreditei que por isso, porque não conseguia imaginar histórias para além de mim mesma eu não era uma escritora de verdade. Eu era uma escritora sem imaginação, não conseguia ultrapassar os limites da minha própria experiência.

2.

Carolina Maria de Jesus escreveu Quarto de Despejo em 1960. Além desse livro, Carolina – mulher, negra, mãe de três filhos, solteira, catadora de papel e moradora da favela do Canindé, em São Paulo – escreveu vários outros textos poemas, biografias, ficção, crônicas, provérbios. Carolina era consciente do seu projeto literário e se definia como escritora. No entanto, foi acusada de ser uma “mistificação literária”, ou seja, não era autora dos textos que assinava. Acusavam-na, também, de produzir textos panfletários, esteticamente pobres ou textos sem literatura como afirmou certa vez um colunista de jornal. Carolina Maria de Jesus era uma escritora sem imaginação, não conseguiu ultrapassar os limites da sua própria experiência.

3.

As escritoras inglesas Jane Austen, Emily e Charlotte Bronte, precursoras da literatura produzida por mulheres no Inglaterra, foram também criticadas por aqueles que acreditavam que o ponto de vista da “sala de estar” era menos importante que os “grandes dramas” vivenciados pelos romances escritos pelos homens. As relações humanas, a observação psicológica e o caráter dos personagens eram desqualificados em função do seu local de observação, ou seja, o espaço doméstico. As escritoras inglesas dos séculos 18 e 19 ousaram romper a hegemonia dos homens no campo da literatura, mas foram igualmente acusadas de escrever textos sem imaginação, incapazes de ultrapassar os limites da própria experiência.

4.

Acusar as mulheres de escreverem textos sem imaginação foi uma prática sistemática de desvalorização e desqualificação de uma literatura produzida a partir de um outro ponto de vista que não o dos homens. A palavra imaginação foi muitas vezes usada contra as mulheres. Mas o que significa usar uma palavra (ou muitas palavras) contra as mulheres e o que isso tem a ver com o tema da nossa mesa aqui hoje que é literatura e feminismo?

5.

Falar que as escritoras mulheres têm pouca imaginação é uma distorção e uma inverdade. É uma imprudência quando não conhecemos os textos que as mulheres escreveram e escrevem e, assim, desconhecemos que a história da literatura produzida pelas mulheres é a história de uma resistência. Significa também aceitar um juízo de valor perverso (mais um juízo de valor perverso na infinita lista de juízos de valores perversos) que foram construídos historicamente para submeter as mulheres aos seus devidos lugares.

Ou seja, esse juízo de valor – as escritoras mulheres têm pouca imaginação – foi usado historicamente para desqualificar a produção intelectual e literária das mulheres e nele está implícito algumas falsas-verdades:

A primeira falsa-verdade é que a imaginação é um atributo da ficção. É o modo binário de ver o mundo, colocando as coisas em oposição: verdade X mentira. realidade X ficção. teoria X prática. cultura X natureza. experiência X teoria. Essa falsa-verdade desconsidera a imaginação como fluxo contínuo da vida, embaralhamento entre pessoal/individual e coletivo/político, entre poesia e cotidiano, entre escrita e experiência.

A segunda falsa-verdade é que a vida das mulheres, seus temas, seus objetos de interesse e de escrita não se destinam à literatura. Historicamente, convencionou-se que os lugares de experiência da mulher (relações afetivas e familiares, maternidade, casamento, o espaço doméstico e tantos outros) eram menos importantes politicamente (e esteticamente) que os temas dos homens: a guerra, a inteligência, a política, a ética, as conquistas. Vale lembrar que quase todas as definições acerca do que é a literatura ou o literário são construções criadas pelos homens. Vale lembrar também que antes do século 18, as mulheres eram impedidas de escrever e, quando começam a escrever, uma forma de desqualificar seus textos é desqualificar seus temas, dizendo, por exemplo, que eles são irrelevantes ou limitados em contraste como a temática dos homens, super valorizada em uma sociedade que super valoriza tudo que é masculino. Virginia Woolf escreveu: “É provável, no entanto, que quer na vida, quer na arte, os valores de uma mulher não sejam os valores de um homem. Assim, quando se põe a escrever um romance, uma mulher constata que está querendo incessantemente alterar os valores estabelecidos – querendo tornar sério o que parece insignificante a um homem, e banal o que para ele é importante. Por isso, é claro, ela será criticada; porque o crítico do sexo oposto ficará surpreso e intrigado de verdade com uma tentativa de alterar a atual escala de valores, vendo nisso não só uma diferença de visão, mas também uma visão que é fraca ou banal, ou sentimental por não ser igual a dele.”

Só consigo perceber tudo isso hoje, ou seja, como um juízo de valor histórico e machista criou falsas-verdades e definiu a concepção do que é o literário, porque sou feminista e porque o feminismo como ferramenta do pensamento, como máquina de desconstrução de sentidos pré-estabelecidos e falsas-verdades, me ajuda a entender as engrenagens desse saber-poder e construir contra-narrativas à narrativa oficial de que as mulheres escrevem textos sem imaginação.

Para mim, escrever é se equilibrar em uma linha muito tênue que não está na margem das coisas – a vida de um lado a escrita de outro. Não, escrever está no meio. Escrever não é limite, mas potência. Ao invés de pensar que as escritoras mulheres não conseguem ultrapassar os limites da própria experiência, acredito que elas usam a própria experiência como potência para criar novos imaginários sobre as nossas vidas, inclusive sobre as vidas dos homens.

Ao escrever esse texto estou imaginando novas formas de ser feminista e novas formas de ser escritora. O feminismo – pra mim, assim como a escrita literária, são processos, são construções, são movimentos. Escrever é abrir uma fresta para o caos, e olhar esse caos, não para compreendê-lo, mas para habitá-lo provisoriamente. Os textos que as mulheres escrevem são imaginativos porque constroem um movimento de entrada e fuga da realidade que escapa e subverte os papéis de gênero tradicionais e porque inventam um lugar de fala para a mulher. Ironicamente, as mesmas escritoras que foram acusadas de ter pouca imaginação traçaram, a partir desses lugares de confinamento, importantes linhas de fuga que explodem nossa percepção sobre o que significa politicamente, esses espaços. As escritoras mulheres do passado e do presente imaginaram formas de vida menos opressivas, imaginaram novas perguntas para a naturalização dos gêneros e das relações entre mulheres e homens, imaginaram outras histórias sobre a mesma “boa” e velha história e isso significa muita coisa.

Virginia Woolf em seu brilhante ensaio Um teto todo seu afirma que um momento muito importante da história da humanidade é quando, no século 18, a mulher de classe média, mesmo contra tantos impedimentos, começa a escrever. Isso é revolucionário porque significa que a partir desse momento as mulheres podem dizer o que pensam.

6.

Eu não tenho uma definição sobre o que é a literatura produzida por mulheres e acho bom que eu não tenha. Definições são conjuntos de características, parâmetros, incidências que explicam e descrevem os objetos, mas também os delimitam. Nesse sentido, acho importante que a literatura escrita por mulheres seja um campo em construção, invenção e, também, contradição. Apesar do profundo respeito pelas mulheres que se reconhecem como produtoras de uma escrita feminina, essa definição não me representa. O feminino - enquanto adjetivo e na minha história de vida – sempre me remeteu a certas prescrições, regras, esquadrinhamentos da minha subjetividade. Neste sentido, acho que o adjetivo “feminino” não dá conta da multiplicidade de textos escritos pelas mulheres.


Como escritora, leitora e professora de escrita literária estou menos interessada em saber o que a literatura é e mais curiosa para descobrir o que a literatura pode ser para mim e para as dezenas de mulheres com quem – graças ao meu trabalho como professora – tenho o privilegio de conviver: mulheres de diferentes faixa etárias, gêneros, classes sociais, orientações sexuais, etnias, religiões, lugares de fala e de pertecimento cultural. Mulheres com projetos políticos e desejantes de escrita que imaginam com seus textos resistências livres, criativas, políticas e poéticas.

Muito obrigada.

*Texto lido na mesa Literatura e Feminismo, na segunda edição do Festival Internacional de Literatura de Belo Horizonte – FLI-BH, em setembro de 2017. Referências: Virginia Woolf (Um teto todo seu e Mulheres e Ficção). Gloria Anzaldúa (Falando em línguas: uma carta para as mulheres escritoras do terceiro mundo). Grada Kilomba (Descolonizando o conhecimento). Constança Lima Duarte (Feminismo e Literatura no Brasil). Aline Alves Arruda (Carolina Maria de Jesus: Projeto Literário e edição crítica de um romance inédito). Sandra Harding (A instabilidade das categorias analíticas na teoria feminista). Virginie Despentes (Teoria King Kong). Regina Dalcastangnè (Um território contestado: literatura brasileira contemporânea e as novas vozes sociais).

Escritora e professora de literatura. É mestre em Estudos Literários pela UFMG e estudou Literatura Latino-americana na Universidade de Buenos Aires (UBA). Participou do programa Rumos de Literatura, na categoria Crítica Literária (2010/2011), promovido pelo Itaú Cultural e foi vencedora do Prêmio Folha Memória – Programa de Orientação de Pesquisa em História do Jornalismo Brasileiro, organizado pelo jornal Folha de São Paulo (2010). Publicou os livros História da Imprensa Gay no Brasil (Publifolha, 2011), 10 Poemas de Amor e de Susto(Edição independente, 2013). A outra noite (Edição independente, 2015) Uma mulher (Edição independente + Guayabo, 2017). Desde 2009, atua como arte-educadora no campo da palavra e suas interseções com a imagem. (foto: Bianca de Sá)