[por Laura Cohen]
A maioria das pessoas chega ao ateliê buscando duas coisas: um espaço para escrever e partilhar a escrita e, principalmente, autorização para escrever. Eu mesma sempre me vejo buscando autorização para escrever, e a autorização vem principalmente dos meus interlocutores da escrita: editores, amigos, leitores. Dizer “Laura Cohen é escritora” foi uma decisão muito difícil de tomar, mesmo sendo escrever o trabalho que eu mais faço. Mas ainda me assusta o tanto que a gente se sente desautorizado a pegar uma caneta e colocar as ideias no papel. Eu tenho medo, as pessoas têm medo: temos medo de soar bobos, temos medo de não encontrar a palavra correta, temos medo de que ninguém goste do que a gente faz, temos medo que as críticas nos impeçam de escrever e por isso muitas vezes nem chegamos a escrever.
Há uma ideia sobre escrever que me incomoda muito e que eu já ouvi sendo dita pelas pessoas que escrevem e não escrevem. É uma sensação comum – e está até no texto da peça maravilhosa do Espanca!, Amores surdos: todas as histórias do mundo já foram contadas. Todas as histórias do mundo já foram escritas, outros escritores já escreveram tudo que havia para ser escrito. Mas vez ou outra encontro uma pessoa dizendo que se alguém quiser escrever, precisa antes que ler tudo que X e Y escritores brilhantes escreveram antes e então pensar: ainda há algo para ser dito? Se a resposta é sim, vamos lá, você tem permissão para escrever. Normalmente eu rebato com a minha realidade: “e se escrever for uma coisa necessária, como é para mim? E, também, se alguém tivesse dito isso ao Drummond (olha que perigo), que depois de ler Homero e Camões, se ele não achasse que alguma coisa ainda estava por ser dita, ele ficaria sem escrever?”. Enfim – concordo apenas que, para um escritor, ler é a atividade mais necessária de todas. Conhecer outros modos de fazer, outras narrativas é a forma de achar ferramentas para dizer o que temos a dizer, e por isso ler acaba sendo também uma necessidade.
Também acho que tenho medo da grandeza da escrita: criar um mundo novo (com pessoas que nunca existiram, que jamais existirão e que parecem existir de verdade) é por si só muito assustador. Há aqui uma espécie de magia, o simulacro, a ilusão maior que a vida – parece também que estamos tocando em alguma coisa mística e sagrada, como a arte foi completamente um contato com os deuses, um dia. Escrever é algo que me emociona muito: revisando aqui sozinha em casa o romance que escrevi em Israel (e que parece ainda estar tão longe de ser editado), às vezes sinto um mal estar que chega a ser físico, às vezes sinto uma euforia muito grande. É muito difícil controlar, escrever mexe com a cabeça da gente, coisa das musas, como já falei em outro texto.
Ontem eu postei no instagram uma imagem que fez muito sucesso – a regra número oito de uma série de dez regras escritas pela Irmã Corita Kent. A regra é “não tente criar e analisar ao mesmo tempo. São processos diferentes”. Para mim é a regra mais brilhante e iluminadora do conjunto de regras – criar e analisar ao mesmo tempo é tentar fazer duas coisas incompatíveis com mesmo objeto simultaneamente. Algo idiota como tentar lavar e passar uma peça de roupa ao mesmo tempo. Eu tenho uma dica prática para não criar e analisar ao mesmo tempo, algo difícil porque a criação se serve sim de uma dose de análise, e é bem aí que as coisas se bagunçam. Funciona mais ou menos assim:
- Escrevo o esboço de um texto no caderno (estou sempre anotando coisas).
- Digito o texto no computador, adicionando ao esboço manuscrito algumas correções e detalhes.
- Quando sinto que o texto está saturado/bom/ruim/desgastante/pronto/quase pronto, ou quando eu não aguento mais, vou e imprimo, mesmo estando incompleto.
- Às vezes espero uma semana ou mais para reler. Computador desligado, celular desligado, eu me sento com o texto escrito e vou fazendo correções no corpo da narrativa. Dá certa ilusão de que o texto não é mais meu, e eu estou corrigindo alguma coisa bem afastada de mim, que outra Laura escreveu.
- Completo o que está incompleto, corto o desnecessário.
- Digito o texto de novo (ou faço as correções na tela).
- Repito o processo quantas vezes forem necessárias, ou até quando a minha querida editora Elza Silveira arranca o texto da minha mão.
Isso aí não vai acabar com o nosso sofrimento, mas certamente é um instrumento para se afastar da criação e entrar na análise sem morrer demais. Seria, utilizando o exemplo ridículo que eu citei acima, estender a roupa no varal e esperar secar antes de passar.
Eu me lembro de algo que o nosso professor de desenho, Marcelino Peixoto, dizia durante as aulas: “Adoraria de fazer um desenho como o seu, mas como eu não sou você, eu jamais vou fazer um desenho assim”. Recebo gente dizendo: “eu queria escrever como a Clarice Lispector, mas nunca vou escrever assim”. É claro que ninguém nunca vai escrever como a Clarice porque só a Clarice é a Clarice. A própria Clarice fazia uma coisa genial: ela publicava os livros e não lia mais (para não sentir vontade de mudar tudo). Nós certamente temos influências, o que é uma das delícias de ser escritor, o exercício de estilo. Entretanto, é exatamente por isso que, se alguém tem a necessidade de escrever, a pessoa vai ter o que dizer mesmo depois de ler toda a literatura do mundo – porque não somos Pessoa, Drummond, Camões, Homero ou Clarice, somos outra coisa, outro tempo, outras palavras.