Querida Eliza,
Tentei escrever este texto como escrevo para autores que trabalharam aqui no ateliê e vão publicar um livro: com certa distância, mas no lugar de quem olhou de perto e viu a coisa acontecendo.
Não consegui – engraçado, não conseguir é um dos temas d’O caderno das inviabilidades. Está lá o que não é possível, os perigos, os desentendimentos, conter impulsos, organizar a casa, gestar e perder. Coisas muito duras. Sinto isso tudo aqui agora.
Acho que desta vez estou bastante comovida com o lançamento desse livro, Eliza, sempre me comovo, mas dessa vez foi um pouco diferente porque estou te vendo com clareza no lugar desconfortável que eu antes ocupei ao lançar meus dois livros. Escrevo em formato de carta, uma carta aberta, porque sei que essa é a linguagem que mais te merece – uma das suas linguagens preferidas. A primeira pessoa com quem quero falar neste texto é você, os outros leem porque também têm que saber.
Quando a gente está lá escrevendo um livro, ninguém está olhando. Quando a gente publica o livro, todo mundo está olhando, menos a gente. Você sabe bem, Eliza, que escrever um livro não é um processo mágico, mas apesar da magia inicial da ideia, aquela faísca que tem sim mistério, a gente precisa queimar muito para ver o poema acontecer como poema. É raro o poema vir sozinho e pronto, como um presente de uma musa.
Queria era te falar que publicar um livro é enterrar o morto: quando a gente lança um livro, a gente já está em outros processos. Livro fechado, a gente vai é pensar em outras coisas. O caderno das inviabilidades é uma coisa que já se foi, um processo que já se extinguiu – mas ele vai te ajudar nos processos próximos. O primeiro livro é um paradigma, um exemplo, uma recusa: aqui, você se torna uma escritora aos olhos da sociedade, olhos que não viram a sua labuta, olhos que nem sempre souberam que Eliza Caetano escreve desde sempre, olhos que podem confundir a Eliza com as palavras que estão no livro. Mas quem pensa na pessoa que empilhou os tijolos da casa onde a gente mora agora, quando não havia a casa?
Quando você leu alguns destes poemas no ateliê, sempre rondava uma espécie de sopro de entendimento e desentendimento: “este eu entendi”, “não entendi” – nos valíamos destas expressões genuínas e às vezes tão ingênuas. Você sabe que escrever é outra coisa e está além do entendimento. Ao voltar agora a estas páginas, sinto que existe uma compreensão de dois lados no poema: quando a gente compreende o poema, quando o poema compreende a gente. Seus poemas nos compreendem quando estamos na capacidade de nos colocarmos ali onde o que é dito só pode ser escrito em forma de poesia para dizer alguma coisa.
A questão da feitura e da falha é sua, e acho que aparece tanto n’ O caderno das inviabilidades, desde o nome: inviabilidade. A coisa que está lá mas não serve, não funciona. Não sei se adianta tentar. Não deu certo dessa vez. Até os poemas “primeira tentativa”, “segunda tentativa”, “terceira tentativa” refletem esse sentimento – poemas de vocabulário cotidiano, que mostram que a tentativa de viver é muito semelhante à tentativa de escrever: tentamos viver bem, tentamos escrever bem. Não deveria ser tão difícil. Mas mesmo assim, há a dificuldade das coisas que parecem minúsculas: “fazer a unha”, “misturar o macarrão ao molho de forma homogênea/ Abrir a correspondência” – quem consegue? Acho que O caderno das inviabilidades é um livro sobre escrever, viver e ser. Uma carta ao que não está lá e deveria estar.
Ser mulher, principalmente: como ser mulher? Se a mulher, antes, era aquilo que ficava entre os animais e os homens, veio com este poema de outra forma porque na verdade o homem é inviável e nós fazemos as coisas: “Os homens inviáveis./ Os homens, de onde nada nasce./ Onde não há menstruação /não cabe vida, as mãos injustas e protetoras dos homens” (p. 33). Seremos o que dizem para nós sermos – há o começo poema que onde não mora apenas a Eliza, mas toda a mulher: “Dizem que sou elegante. Dizem que sou doce. Dizem que compreendo. Dizem que sou mãe. Dizem que sei fazer pães e cortar bolos de aniversário. Dizem que sou dedicada. Tenho o pescoço longo, os olhos fundos e sorrio sempre. Mas não se engane. Sou dissimulada, sei o que há em mim e não reconheço o que vai adiante. Nos olhos dos outros sou elegante mas não me convencem. Há a elegância que dá em árvores, que se ergue sobre o asfalto e faz sombra. Há tudo que minha mãe ensinou sobre ser boa.” (p. 83) – o barato da poesia é bastante isso: vai do particular para o universal, saiu daí da sua faísca e todas nós podemos nos ver nesse retrato dizem-que-sou.
Você não sabia que ia publicar este livro: não sabia que ia ficar assim. Acho que a editora Urutau teve o pulo do gato e a delicadeza de trazer para junto do seu caderno as fotos da Laís Blanco, propondo não só a potência dos seus poemas, mas uma conversa infinita entre imagem e palavra. É engraçado como isso teve uma repercussão entre nós. A Flávia Péret fez o seguinte comentário delicioso: “você viu o livro da Eliza? Coisa de gente grande”. Você é grande gente porque sabe que poesia é outra coisa.
Durante o ateliê, você se refere à escrita usando uma expressão muito precisa: o brinquedo. “Fulana descobriu o brinquedo, agora não quer mais largar”, você diz, se referindo a quem começou a escrever agora. Acho que agora é você que vai mostrar pra gente como se brinca. Não vamos mais largar.
Um beijo grande,
Laura Cohen.
[Amanhã, dia 15 de setembro, a partir das 19h, Eliza Caetano vai lançar o seu lindo livro de poemas "o caderno das inviabilidades", que conta com fotografias de Laís Blanco. O Lançamento acontecerá na Casa Fiat de Cultura, Praça da Liberdade, 10 - Funcionários, Belo Horizonte - MG. Aguardamos vocês lá!]