João Tonucci (Belo Horizonte, 1985) é graduado em Ciências Econômicas, mestre em Arquitetura e Urbanismo e doutor em Geografia. É professor da Faculdade de Ciências Econômicas da Universidade Federal de Minas Gerais (FACE/UFMG). Seu primeiro livro está em fase de finalização. Aqui estão alguns dos poemas do volume:
segunda pele
acordar e
lembrar urgentemente
que é
preciso lavar as roupas
.
retiro cada
peça do balaio
(minha mãe
me ensinou a chamar assim
o que todos
chamam de cesto)
e as degredo
à máquina de lavar
.
olho para
aquele amontoado
de panos
tristes e retorcidos
eras
geológicas
sedimentando
o cansaço
dos últimos
dias
.
elas me
espreitam mudas
vago
desespero
à espera do
turbilhão
.
sigo exausto
o tempo
arrítmico estagnado
enquanto a
segunda pele
cresce e
obedece
aos compromissos
da semana
.
— que tristes são as roupas
usadas e passadas sem ênfase
*
banho de sol
os gatos do
terraço vizinho
conhecem bem
a hora da luz
distendidos
ao alfabeto hélio
enquanto
confundo o peso
destilado de
um sono frio
com a
espreita de um poema
que se
quisesse felinamente à prova
.
os gatos do
terraço vizinho
acordam uma
ânsia
morna de
outras idades
cidades
lentas a palmilhar
dedicadamente
e o gosto
infantil de me estirar à luz
cerrar
apertar os olhos
deitar a
língua sobre a sílaba dos pelos
e sentir
cozinharem
as palavras ao sol
*
crémaillère
a mesa é
farta e não respeita silêncio
os tempos
amigos
tão
desencontrados
.
presto
atenção
e nada
corresponde a nada
entre um
drink e outro marejo
.
o sorriso
primeiro dos bebês
mesmo os
planos as mudanças
e todas as
coisas que não vão mais mudar
.
ao menos não
dói
tal qual a
íntima dor de cada
ou como se
fosse tão minha
.
do que rimos
só nós
entendemos
liberdade
antes fria que tardia
.
abrimos as
portas sem medo
aterrando
mais verde pelos cantos
a quem seja
a palavra amigo
.
arrendar a
vida adulta
jogo de cena
ou não será
*
página virada
nós atravessamos tantas palavras
e ainda mal nos
conhecemos
.
desde que comecei
já não estou mais aqui
.
o verso deixa o rastro alinhado
de quem passou
e não vai voltar
.
“bem vindo” sussurra
então
talvez
um convite
ao
desencontro
.
mas me extravio
e sou enfim encontrado
do
outro lado da página
.
neste espaço
já somos um outro
.
— desaparecer é matéria do tempo
*
ano novo
o ano vai se desmanchando
vergado
das palavras que ninguém colheu
ninguém
soube cultivar afora o mofo
.
a casa se corrói em vendavais
engenharias
desfeitas ao tato d’água
formas
podres formas breves
.
ansiedade aquecida dos amigos
fogos
de artifício antiácidos êxtases tímidos
nada
dura mais que o curto circuito do sol
.
este
dia de espera
desfeito
espesso de expectativas
goteja
o que restou
destila
o déficit fiscal
dos
sentimentos fanados
.
o ano vai enfim se desfazendo
indiferente
ao úmido
ao
próximo
.
desbarrancado assim
resta
saber
em
plena torrente
.
se
sobrará enfim
barro
para amassar