Cinco poemas de João Tonucci

09 de março de 2020


João Tonucci (Belo Horizonte, 1985) é graduado em Ciências Econômicas, mestre em Arquitetura e Urbanismo e doutor em Geografia. É professor da Faculdade de Ciências Econômicas da Universidade Federal de Minas Gerais (FACE/UFMG). Seu primeiro livro está em fase de finalização. Aqui estão alguns dos poemas do volume:



segunda pele


acordar e
lembrar urgentemente



que é
preciso lavar as roupas



.



retiro cada
peça do balaio



(minha mãe
me ensinou a chamar assim



o que todos
chamam de cesto)



e as degredo
à máquina de lavar



.



olho para
aquele amontoado



de panos
tristes e retorcidos



eras
geológicas



sedimentando
o cansaço



dos últimos
dias



.



elas me
espreitam mudas



vago
desespero



à espera do
turbilhão



.



sigo exausto



o tempo
arrítmico estagnado



enquanto a
segunda pele



cresce e
obedece



aos compromissos
da semana



.



— que tristes são as roupas



usadas e passadas sem ênfase



*



banho de sol


os gatos do
terraço vizinho



conhecem bem
a hora da luz



distendidos
ao alfabeto hélio



enquanto
confundo o peso



destilado de
um sono frio



com a
espreita de um poema



que se
quisesse felinamente à prova



.



os gatos do
terraço vizinho



acordam uma
ânsia



morna de
outras idades



cidades
lentas a palmilhar



dedicadamente



e o gosto
infantil de me estirar à luz



cerrar
apertar os olhos



deitar a
língua sobre a sílaba dos pelos



e sentir
cozinharem



as palavras ao sol



*



crémaillère


a mesa é
farta e não respeita silêncio



os tempos
amigos



tão
desencontrados



.



presto
atenção



e nada
corresponde a nada



entre um
drink e outro marejo



.



o sorriso
primeiro dos bebês



mesmo os
planos as mudanças



e todas as
coisas que não vão mais mudar



.



ao menos não
dói



tal qual a
íntima dor de cada



ou como se
fosse tão minha



.



do que rimos



só nós
entendemos



liberdade
antes fria que tardia



.



abrimos as
portas sem medo



aterrando
mais verde pelos cantos



a quem seja
a palavra amigo



.



arrendar a
vida adulta



jogo de cena



ou não será



*



página virada


nós atravessamos tantas palavras



e ainda mal nos
conhecemos



.



desde que comecei



já não estou mais aqui



.



o verso deixa o rastro alinhado



de quem passou



e não vai voltar



.



“bem vindo” sussurra
então



talvez
um convite



ao
desencontro



.



mas me extravio



e sou enfim encontrado



do
outro lado da página



.



neste espaço



já somos um outro



.



— desaparecer é matéria do tempo



*



ano novo


o ano vai se desmanchando



vergado
das palavras que ninguém colheu



ninguém
soube cultivar afora o mofo



.



a casa se corrói em vendavais



engenharias
desfeitas ao tato d’água



formas
podres formas breves



.



ansiedade aquecida dos amigos



fogos
de artifício antiácidos êxtases tímidos



nada
dura mais que o curto circuito do sol



.



este
dia de espera



desfeito
espesso de expectativas



goteja
o que restou



destila
o déficit fiscal



dos
sentimentos fanados



.



o ano vai enfim se desfazendo



indiferente
ao úmido



ao
próximo



.



desbarrancado assim



resta
saber



em
plena torrente



.



se
sobrará enfim



barro
para amassar