A Elaine Moraes, uma amiga/aluna do ateliê estava aflita porque alguém havia dito a ela que, para ser escritora, era preciso escrever todos os dias e ela não conseguia escrever diariamente. Acho que um dos maiores equívocos na hora de escrever é achar que existe uma fórmula disciplinar que vai ser repetida diariamente e por todos até o fim da vida. Por isso, acho que questão da disciplina para escrever é uma das queixas mais frequentes aqui no Estratégias narrativas. Sou uma pessoa profundamente disciplinada (apesar de ser desorganizada) e acho que sou disciplinada porque entendo que a disciplina e a rotina são coisas que mudam de tempos em tempos e que a disciplina ideal não existe, mas acontece de acordo com as circunstâncias de cada dia/época/semana/pessoa. Meu amigo Igor Reyner tem uma definição muito boa: ter disciplina é “ser discípulo de si”, é seguir a si mesmo. Portanto, disciplina para escrever tem a ver com autoconhecimento, descobrir o que você precisa fazer, como precisa fazer, quando você precisa fazer, prestar atenção no conforto da rotina e no funcionamento dos pensamentos. E, também, pedir ajuda quando for preciso.
Eu, por exemplo, não escrevo todos os dias, mas tomo notas todos os dias. Existe uma diferença entre escrever e tomar notas: escrever é sentar a bunda na cadeira e pôr ordem no texto, tomar notas é simplesmente o trabalho cotidiano de ir catando as ideias e organizando no papel. Tem gente que tem mais necessidade de tomar notas, tem gente que não: ao contrário de mim, tenho um amigo escritor, o Caio Meira, que jamais toma notas. Quase todos os dias conversamos sobre processos de escrita, e ele me disse na semana passada que a escrita é algo que está sempre acontecendo com ele, mesmo que ele não escreva uma palavra, e que enquanto ele vai vivendo, é como se algo estivesse fermentando dentro dele. Ele faz pães e, em uma dessas conversas, usou uma metáfora linda do processo de fazer pão. O pão que passa por etapas: você junta os ingredientes, amassa, deixa descansar, sova de novo, deixa crescer e só então assa, espera esfriar e só aí corta e come. Caio me disse que já tentou tomar notas, escrever em caderno, escrever diário, mas para ele não funciona - não é da disciplina dele. Para muita gente, esse tomar nota é andar na rua, pensar, conversar, fazer comida, ir à terapia, fazer natação, mandar áudio de whatsapp. A incompatibilidade que algumas pessoas têm com o caderno pode ser devido a uma boa memória (ou uma conformação com a perda das ideias) ou, quem sabe, uma boa relação com o computador (que eu não tenho), a ponto de conseguir sentar a bunda na cadeira e escrever com o que se tem na cabeça. É preciso entender onde a gente está confortável com a escrita.
Tomar notas, por outro lado, é algo que me dá prazer, me dá ritmo e controla a minha ansiedade. Minha cabeça funciona muito rápido e o acúmulo mental da escrita me faz mal. Escrevo sempre que tenho vontade de escrever, mesmo que seja em momentos inconvenientes, eu tiro o caderno e tomo notas, sem vergonha. E todas as noites antes de dormir, depois de ler um pouquinho, escrevo um pouco no caderno – não exatamente um diário, mas sobre coisas que ouvi no dia, ideias que tive, algo que aconteceu, trechos inteiros dos romances. Acho esse momento muito bom: com sono, acho que o autojulgamento das palavras vai embora e as ideias fluem de uma forma deliciosa. Entretanto, meu caderno é o caos: tem nota para romance, receita de pão (também curto), contas, listas de tarefas, diário, desabafo, etc. A minha solução é arrumar sistemas de classificação das notas antes de passá-las a limpo (tem um texto aqui sobre isso). Deposito as ideias, depois as organizo, mas só consigo organizar as coisas quando elas estão diante dos meus olhos na página e fora da minha cabeça.
Assim, os tempos e os métodos da escrita são diferentes. Enquanto o Caio trabalha direto no computador em um tempo alongado (e depois, igual a mim, imprime, relê e digita tudo de novo, isso é assunto pra outro texto), eu tomo notas por meses e só então passo para o computador em poucas semanas, compondo um livro. Muitas vezes, antes de chegar ao final da narrativa, eu me interrompo e abandono um pouco a história, e vi isso acontecendo também no processo de muita gente, inclusive do Caio. Em uma oficina que estou fazendo, o Assis Brasil chamou isso de abandono temporário. É quando cansamos de um texto e o deixamos de lado, o que é bastante saudável para a escrita. Tudo que escrevo passa por dias, semanas ou até meses de abandono. O abandono, portanto, pode ser um método e não uma falta de disciplina, o abandono inclusive pode ser estimulado. Para dar outro exemplo, no curso Na pista do poema, a professora Eliza Caetano entregou uma pasta rosa aos alunos (inspirada pela pasta rosa da Ana Cristina César) e pediu que as produções ao longo dos dois meses fossem guardadas ali e esquecidas para serem abertas novamente ao fim do curso. É uma dica também que a Angélica Freitas dá em seus laboratórios poéticos: escreveu um poema? Guarda, esquece, um dia você volta a olhar e editar – nas palavras dela “aperta porcas e parafusos”. Eu faço isso com os romances que escrevo: chega um ponto em que canso, me desconecto dos personagens e da narrativa, sinto que é hora de parar - deixar o pão crescer. Pode ser um momento de angústia, sim, mas um momento para ir ler uns livros, escrever outras coisas, escrever diário, respirar, refrescar para depois de alguns meses voltar com os olhos limpos para a narrativa. Pode ser, inclusive, um momento de libertação...
Esse momento de abandono temporário também pode ser o momento de pedir ajuda: alguém que prepare os originais, uma leitora crítica, uma edição, mesmo que a coisa toda não esteja pronta. Abandonando o texto no colo dos outros e indo viver um pouco, perdemos o gosto do texto na boca para, depois de um tempo, voltar a desejá-lo, e aí teremos uma pessoa para dividir o pão, compartilhando a respeito do que foi escrito e se encontra agora distante de nós.
A ideia mais confortável para mim, no caso do abandono, é ir mantendo um monte de projetos de escrita. Escrevo muitas coisas ao mesmo tempo para poder abandoná-las quando for possível e não cair no vazio absoluto. Aliás: o vazio absoluto às vezes é bom para dar uma refrescada na escrita. É um terror (pelo menos para mim), mas no final pode funcionar como via de acesso para outra coisa. Pelamor: paremos de ter pressa para que as coisas fiquem boas no segundo em que a gente escreve. E que a gente se permita a escrever coisas meio mais ou menos. Faz parte da disciplina escrever coisas ruins e depois reescrever, pensar que a gente só pode começar escrevendo uma coisa genial é crueldade.
Outro problema são as distrações que impedem a gente de ter uma boa disciplina. Sou disciplinada, mas sou também distraída pra caramba. Se eu fosse escrever direto no computador, direto na página em branco do word, sem um esquema no caderno para me guiar, eu com certeza ia ficar entrando no facebook toda hora. Por isso tomo notas offline, em caderno. Uma boa é desligar o 4g do celular e o wi-fi da casa por uma horinha ou duas, quando estou me distraindo muito faço isso e digo que é uma delícia ficar sozinha com a escrita, sem whatsapp de trabalho incomodando. No fundo, acho que a principal questão aqui é outra: uma questão de prioridades. Muita gente tem dificuldade de priorizar a escrita e encará-la como um trabalho por motivos vários: acham que é arrogância se dizer escritor, porque escrever é arrancar casca de ferida e entrar em contato com coisas da gente que às vezes doem, porque dá um trabalho do caramba, dói no corpo, inclusive, ficar um tempão sentado batendo letras. É um trabalho longo e demorado, mas a sua disciplina para fazê-lo depende do quanto você quer, precisa e na nossa habilidade para fazer da escrita um momento prazeroso.
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Laura Cohen é escritora e criadora do projeto Estratégias narrativas. Formada e mestranda na faculdade de Letras da UFMG, publicou os romances História da água (2012) e Ainda (2014), e o livreto de poemas Ferro (2016). É uma das coordenadoras do selo literário Leme, editando vários livros de prosa e poesia.