Escrever Canção sem palavras

11 de dezembro de 2017 - Laura Cohen

Em janeiro de 2014 eu fiz uma viagem a Israel. Às vésperas dessa viagem, uma amiga querida, Rúbia, estava passando por uns perrengues de vida de recém-formada: tentando mestrado aqui e ali, fazendo concursos para tocar em orquestras, fazendo um cachê ou outro, entrando em conflito com várias pessoas. Algo na personalidade dela me deixava admirada: Rúbia sentia raiva das situações, mas não desanimava. Olhando para ela ali, almoçando comigo na minha casa às vésperas da viagem, pensei: se eu estivesse no lugar dela, iria para Israel agora e não voltaria nunca mais.

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Levei comigo para a viagem um caderno Cícero de capa preta e dura, com elástico. Preenchi-o quase que inteiramente em momentos de intervalo: no ônibus, antes de dormir, no meio do almoço, enquanto as pessoas terminavam de se aprontar para sair... Eu tinha vinte e quatro anos e tinha publicado apenas um livro, estava preparando meu segundo livro para publicação. Ali em 2014, havia acabado de me formar na universidade, tinha trabalho, namorado, família e a perspectiva de tentar uma prova de mestrado no fim do ano, meu caminho era claro e feliz. Entretanto, passar os dias em Israel longe da rotina em BH, com pessoas que eu não conhecia veio com uma sensação muito potente de que eu estava encontrando um mundo com o qual eu me identificava com profundidade e que eu poderia muito bem passar mais tempo ali e me sentir também em casa.

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Sempre que começo a escrever um romance, começo pela personagem. A personagem principal desse livro tem muito da Rúbia, minha amiga em crise, mas tem muitíssimo de mim também, e como vivo o que muitas mulheres jovens vivem, Maria Teresa, a personagem do livro, é como muitas mulheres brancas e jovens de classe média, no Brasil. Quando Rúbia morava em Belo Horizonte, ela me levava muitos concertos, principalmente de violão. Rúbia é flautista, hoje toca na Filarmônica do Espírito Santo, mas sempre gostou muito de violão. Ela me apresentou os estudos para violão do Villa-Lobos, me apresentou o Concierto de Aranjuez (quando pegamos um super engarrafamento ela colocou em toda altura no rádio do carro e ficou cantando em vez de ficar reclamando do trânsito e de que a gente chegaria atrasada na universidade, uma cena que sempre quis escrever, mas não consegui), tem um CD do John Willians dela aqui em casa, que ela me emprestou nessa época. Me apresentou os duos de violão: Duo Siqueira Lima (que assistimos juntas num festival), Duo Assad (que assisti sozinha em uma viagem à Colômbia) e o Duo Abreu, que me deixou meio obcecada: em torno do violão, suas dificuldades, suas exigências, há sempre a ideia de desistir, abandonar, aposentar-se. Maria Teresa acabou sendo uma violonista, uma mulher violonista no Brasil é uma mulher em um meio muito masculino. Maria Teresa é uma excelente violonista, mas mesmo assim sente que está começando a falhar naquilo que mais gosta de fazer e para de reconhecer o próprio desejo. Diante desse perigo de perder a si mesma, ela viaja para fora e para dentro.

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No início, com a ideia de ir para Israel, eu queria escrever um livro sobre o ódio dos séculos, o ódio que passa de pai para filho através da violência, mas não consegui porque Israel, para mim, foi uma experiência majoritariamente amorosa, uma experiência de acolhimento, algo muito pessoal que vou levar por toda a vida. Maria Teresa não sente ódio, ela sente raiva, frustração, impotência, impaciência. Ela é forte, mas ainda assim cede e fracassa. Gosto de pensar que esse livro é a história de uma crise pela qual essa personagem passa: a narrativa começa no pico da crise, de forma que quem lê as primeiras páginas pode se sentir um pouco perdido, assim como ela mesma está perdida.

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Na Fli-BH desse ano, Maria Valéria Rezende usou uma expressão da qual gostei muito: ficciobiografia, em oposição à autoficção. Ela usou isso para falar de sua personagem do livro Quarenta dias. Com uma personagem na cabeça, ela viajou a Porto Alegre e carregou-a aos piores lugares, os mais perigosos e inóspitos, e fez perguntas sobre um rapaz que tinha desaparecido. Ficciobiografia porque primeiro ela tinha uma ficção na cabeça e depois foi buscando acontecimentos da vida. Acho que no meu caso foi a mesma coisa: eu criei aquela personagem em crise, e daí, a partir dos acontecimentos na minha viagem a Israel, fui ficcionalizando coisas que me aconteceram de verdade para dentro dessa personagem. E o engraçado é que às vezes acho que Maria Teresa, essa mulher que eu inventei não sei como, mudou a minha vida em vários sentidos.

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Tive muita dificuldade para dar um título a esse livro, eu que normalmente sou boa de título. No início, ele se chamava “Ódio”, pelo que eu expliquei lá em cima, minha intenção inicial. No entanto, meus leitores iniciais identificaram que ou faltava ódio, ele precisava ser adicionado, ou eu precisava mudar o título. Foi com meu editor da Scriptum, o Wagner Moreira, que me ajudou a chegar em Canção sem palavras. Ele disse: esse livro não é um livro sobre o ódio, é um livro sobre a vida! Fiz uma lista de títulos, nenhum deles funcionou, então ele me sugeriu que eu olhasse o nome dos capítulos. Primeiramente ficamos pensando em “Unhas cortadas”, título do primeiro capítulo – falei a um amigo, também fã de violão, e ele gostou. Mas eu não estava satisfeita. Eu queria um silenciamento. O último capítulo se chamava “Canções sem palavras”, porque Maria Teresa encontrava um CD com umas gravações das Canções sem palavras do Mendelssohn & outros motivos que não posso contar. Wagner gostou, disse que tinha a ver com o espírito da história. Em algum momento, passamos ao singular: Canção sem palavras. Mas não vou falar muito mais que isso porque posso dar spoiler e vocês não vão gostar.

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Meu marido é um dos melhores leitores que tenho: ele tem bom gosto, logo agradar uma pessoa de bom gosto e que faz críticas sem titubear é um bom desafio. O livro era absolutamente linear em sua primeira versão, e tinha metade das páginas que tem agora. “Você não deveria começar do começo”, ele disse. Então, comecei o livro no meio, no ponto alto da crise de Maria Teresa, em que ela chega de madrugada em Jerusalém e mete o dedo no interfone da tia que vive lá. Isso fez com que a história ganhasse corpo. A estrutura do livro é espelhada e tem como centro uma viagem a Israel de norte a sul e depois ao norte de novo, em um capítulo chamado O bem maior. O primeiro capítulo, Unhas cortadas, faz espelho com o último, Canção sem palavras. Os capítulos 2 e 3, idílio e exílio correspondem aos capítulos 5 e 6, sim e não, as duas duplas relatam uma tranquilidade e em seguida um ponto agudo da crise.

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Eu não gosto de lançar livro, mas estou fazendo o maior esforço para gostar. De fato, fico feliz com o projeto gráfico, com as pessoas que vão para ver o filhote-livro (apesar do medo de sempre: ficar sozinha e ninguém ir), mas sempre entro em uma espécie de luto, e tenho tentado ver essa morte de uma narrativa como algo positivo para mim: algo acabou, já estou escrevendo outros romances, contos, textos, algo nasce da morte. Hoje, flerto com um tema que ronda Canção sem palavras, mas que não se efetiva nele. Vai sair um livro novo. Assim, talvez seja melhor ver esse gesto de lançar um livro como um gesto de generosidade absoluta. Mas tive que sofrer muita pressão de vários amigos e do meu editor para publicar esse livro logo (alô Wagner, Tante, Flavinha, Caio, André & outros pressionadores: valeuzão). Ou seja, essa publicação só foi terminada na base da bronca. Outro dia eu estava lendo o Formas de voltar para casa do Alejandro Zambra, e uma personagem diz ao narrador que ela gostaria que ele terminasse o livro logo, e ele diz: “É que eu prefiro escrever a já ter escrito. Prefiro permanecer, habitar esse tempo, conviver com esses anos, perseguir longamente imagens esquivas e examiná-las com cuidado. Vê-las mal, mas vê-las. Ficar ali, olhando”.

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O lançamento do livro vai ser dia 16/12, 11h30-14h30, na Scriptum (rua Fernandes Tourinho, 99, Savassi). Aguardo vocês lá!

Laura Cohen Rabelo publicou os romances História da Água (Impressões de Minas, 2012) e Ainda (Leme, 2014), o livreto de poemas Ferro (Leme, 2016) e agora lança o romance Canção sem palavras (Scriptum, 2017). Mestre em estudos literários pela Faculdade de Letras da UFMG, é idealizadora e coordenadora do projeto Estratégias Narrativas, onde ministra cursos e ateliês de produção literária. Faz parte da coordenação do selo Leme da editora Impressões de Minas.

Laura Cohen é escritora. Formada em letras e mestre Estudos Literários pela UFMG, publicou os romances História da Água (Impressões de Minas, 2012) e Ainda(Leme, 2014) e Canção sem palavras (Scriptum, 2017), Caruncho (no prelo, impressões de minas, 2022) e as plaquetes de poesia Ferro (Leme, 2016) e Escrever é uma maneira de se pensar para fora (Leme, 2018). Seu romance Caruncho está com lançamento previsto para o segundo semestre de 2021. Foi vencedora do segundo prêmio de literatura Universidade Fumec, em 2011, e em sua edição de 2009, obteve o terceiro lugar, publicando nas duas edições da coletânea Da Palavra à Literatura – Narrativas Contemporâneas. Faz parte da coordenação do selo Leme da editora Impressões de Minas, editando e preparando livros de diversas autoras e autores. Em 2019, participou do ciclo Arte da Palavra do Sesc, dando oficinas em diversas cidades brasileiras. (foto: Bianca de Sá)