[Por Laura Cohen*]
No último mês tivemos um acontecimento muito bacana no ateliê – uma participante, a nossa querida Carina Gonçalves, depois de passar por uma experiência incrível em Cuba fazendo um curso de cinema autorreferencial, começou a escrever alguma coisa que é uma espécie de documentário escrito, criando textos inéditos e aproveitando os antigos. Carina sempre se queixou (como todos nós, não é mesmo?) de uma dificuldade de escrever, e na última conversa, ela concluiu que a dificuldade de escrever tem a ver com a falta de desejo de escrever ficção – ainda, o desejo para escrever outra coisa. Acho que nisso há um grande desejo de ser autoral, escrever num gênero que só ela é capaz de criar. Não podemos esquecer que não-ficção também é literatura, e se a gente quiser podemos trilhar esse caminho. Olha só:
Entre o fim da minha graduação e a entrada no mestrado, passei por uma experiência ótima de não-ficção. Foi por ideia de um amigo, o André Malta, que depois de ler o meu primeiro livro, disse que sabia mais de mim por conta do meu livro do que por me conhecer pessoalmente. Segundo ele, eu estava completamente lá, apesar de não ter o meu nome e ser sobre personagens e acontecimentos inventados. Depois disso, André insistiu por muito tempo que eu escrevesse a minha realidade: eu, Laura Cohen, passei por tais e tais coisas. Recusei por um tempo.
Eu estava lendo Karl Ove Knausgard, um autor norueguês que resolveu escrever uma espécie de autobiografia literária, começando de uma infância com um pai abusivo e indo até a idade adulta. A vida dele não é lá essa aventura: uma vida normal como a nossa, com suas alegrias e problemas, mas ele escreve tão bem que você não consegue parar de ler - a impressão que temos é que ele escreve a tragédia diária de todos nos. Nisso, o André sugeriu que eu lesse A sangue frio, do Truman Capote, obra que é marco do que o próprio Capote chama de “romance de não-ficção” – e então minha pesquisa começou. Li também um memorial que o próprio André tinha escrito em um contexto acadêmico. No texto dele, ele falava uma expressão que achei muito bonita sobre traduzir grego antigo, se referindo à frase em grego como “frase morta”. Nisso, resolvi chamar o meu texto de não-ficção de Palavra morta pensando nisso - o acontecimento é vivo, quando a gente escreve, ele morre um pouquinho.
Digo a vocês que a minha vida não é muito interessante: felicidade, quase nenhum problema, meus amigos são legais, minha família é ótima, meu companheiro é melhor ainda, não me falta nada. Sou muito disciplinada, gosto de trabalhar, gosto de estudar, ou seja – passo boa parte do meu tempo num escritório em casa. Talvez, as únicas partes realmente interessante sobre mim é o fato de que eu viajo muito e estudo grego antigo – e talvez isso seja interessante só para mim, as outras pessoas devem achar grego antigo legal por cinco minutos e depois vira um tédio.
Entretanto, algumas coisas emocionantes e interessantes aconteceram comigo em 2014, acho que só foram emocionantes para mim porque sou uma pessoa sensível, capaz de me emocionar com coisas bem pequenas. A minha ideia era descrever cada detalhe da forma como eu via a vida: uma aventura. Tenho uma memória ótima para me lembrar de acontecimentos, fisionomias, gestos, rostos, e tenho um hábito de anotar tudo que me parece bom, seja ficção, seja real – daí que eu tinha bastante material para trabalhar.
Escrevi esses fatos pouco especiais, corriqueiros e cotidianos, mas que em mim tinham um poder surpreendente, e foi uma das coisas que eu mais gostei de escrever na vida, igualmente uma das coisas mais fáceis de escrever, e ainda acho que foi a melhor coisa que escrevi até hoje. Comecei escrevendo em primeira pessoa e não funcionou muito bem. Depois, ainda conversando com o André no meio do processo ele sugeriu que eu escrevesse de fora, em terceira pessoa: Laura fez, Laura foi, Laura viu. Foi aí que eu acelerei: mais de cem páginas em dois meses.
Escrever toda a realidade é impossível. A palavra é um filtro e nós temos que fazer escolhas. Joyce e Pérec exploraram um espaço que eu não quis explorar – o espaço caótico da totalidade. Eu tentava narrar os fatos da forma mais direta possível. Outra coisa que eu tinha que controlar era o extremo desejo de mentir: a minha vida é tão normal que eu vivia me colocando em imaginação em desastres absurdos, tragédias, situações que saíam fora do controle. Eu podia e tinha de apagar eventos e pessoas. Quando você apaga uma pessoa de um relato, é como se ela não existisse na história, como se ela nunca tivesse existido. No caso, o omitir é tão importante quanto o contar – escolher o que contar é um ato político.
Depois, passei por uma grande treta pessoal em 2015 e perdi o desejo de escrever a verdade naquela história. Na verdade foi um problema tão grande que representava um plot twist severo demais no texto. Eu não queria escrever que ela, Laura Cohen, tinha enfrentado um problema ridículo e tenso, mas eu queria passar isso para uma personagem ficcional. De repente, a Laura Cohen autora de Palavra morta não era mais a ingênua Laura Cohen representada no livro. Entrei numa baita crise com isso tudo, parei de escrever e fiquei lendo Donna Tartt até eu me sentir melhor.
Só depois que eu parei (e o texto se encontra indefinidamente parado) que entendi que Palavra morta é mais um processo isolado do que um livro ou uma obra única: pode durar para sempre ou ser interrompido onde eu quiser para ser publicado. Realmente é um texto que me ajudou a crescer na escrita e fazer a ficção melhor. Agora, escrevendo o livro que estou escrevendo (já falei dele em alguns posts desse blog), sinto que eu tenho aquela maturidade na escrita por causa de um texto que não terminei, mas no qual trabalhei intensamente.
Voltei a pensar nessas questões quando no fim de semana vi o lindo filme novo do Wim Wenders, Tudo vai ficar bem. Conta a história de um escritor que passa por um evento traumático. No finalzinho do filme (não é spoiler), numa conversa com um jovem que questiona se uma situação real foi reproduzida num romance, e então o escritor responde nem que sim nem que não, mas ele fala de uma maneira tão simples que me encantou:
Acho que é por isso que a vida de uma pessoa que escreve pode virar uma bagunça de vez em quando - confundir o limite da realidade com a ficção é a nossa aventura. A gente pode fazer ficção, não-ficção ou os dois ao mesmo tempo, mentir na verdade e colocar toda a verdade na mentira. O prêmio é a liberdade de narrar. Carina: boa sorte para nós.
*Laura Cohen é escritora e coordenadora do projeto Estratégias Narrativas. Formada em letras pela UFMG, é mestranda na mesma universidade, na área de literaturas clássicas e medievais. Publicou os romances História da Água(Impressões de Minas, 2012) e Ainda(Impressões de Minas/Leme, 2014). Foi vencedora do segundo prêmio de literatura Universidade Fumec, em 2011, e em sua edição de 2009, obteve o terceiro lugar, publicando nas duas edições da coletânea Da Palavra à Literatura – Narrativas Contemporâneas. Faz parte da coordenação do selo Leme da editora Impressões de Minas e possui também trabalhos e pesquisa informais na área de artes plásticas.