Eu estava sentada conversando com minha amiga poeta, a Danielle Magalhães, falando de livros, e ela indicou O pai da menina morta, do Tiago Ferro. Seria a primeira vez naquela semana que uma pessoa que escreve poesia me indicaria o livro – a segunda foi por um post do amigo poeta Diego Vinhas. Eu perguntei a ela se era livro de poesia, grata aos poetas que suprem a minha preguiça de procurar novas publicações, ela disse que não, perguntei se era um romance e ela disse, erguendo os braços no ar: “eu não sei, é uma coisa, não dá pra definir”.
Naquele momento já encomendei o livro e, quando chegou, fui direto olhar a ficha catalográfica: 1. Literatura brasileira. 2. Romance. Acabamos por colocar na caixinha amplíssima do romance também o que é inclassificável na forma de narrar. Basicamente, o livro é um relato de um pai que perde uma filha de oito anos, uma premissa que tem todo o peso de tragédia. Entretanto, a narrativa não é nada linear (talvez por isso a Dani tenha dito que o livro é uma coisa), mas um conjunto de fragmentos, listas, entradas de dicionário, pedaços do cotidiano, memórias, acontecimentos biográficos que ora nada parecem ter a ver com a morte da filha, dando ar de fantasma ao acontecimento enunciado diante da vida que segue, ora falam explicitamente da perda. Todos esses pequenos capítulos do romance marcados por títulos entre colchetes que muitas vezes se repetem: [segunda-feira], [1980], [e-mail], [carnaval], [lista], [hoje], etc.
Uma das listas mais interessantes é a que está na página 25: “[lista] Do que ainda vou fazer neste livro: /Ir para um retiro em Campos do Jordão. / Ter o meu mapa astral feito. / Beijar a professora de Yoga. /Beijar um homem. / Sofrer com o divórcio. / Morrer todas as manhãs e todas as noites durante trezentos e noventa e quatro dias. / (...)”. Essa lista me lembrou a própria lista de acontecimentos que elaboro ou mando meus alunos elaborarem quando estamos escrevendo narrativas longas, para não nos perdermos ou esquecermos das ideias. Diante dessa lista, percebi que o sensacional d’O pai da menina morta é esclarecer que muitas escritas que se constroem na total impossibilidade da construção.
Uma frase de um dos meus romances preferidos resume muito bem a questão morte-narrativa: “morrer obseda a língua”, (A passagem tensa dos corpos, Carlos de Brito e Mello). O sujeito que narra, ao perder a filha, perde o nome e torna-se apenas O pai da menina morta; também a sua filha perde a identidade, é chamada apenas de Minha Filha. O que sentimos por ele é o que ele sente por si mesmo diante da morte: uma sobreposição assustadora de pena, repulsa, dor, culpa, revolta; a narrativa nos deixa de forma crua e sincera diante desses sentimentos considerados indesejáveis. Odiaríamos estar no lugar dele, no entanto observamos o espetáculo de seu sofrimento na mudez de quem lê em silêncio. Falar da morte, hoje, de forma sincera e aberta, é uma impossibilidade: o que dizer às pessoas em um enterro é uma questão desconfortável em tempos em que o sofrimento é proibido, em que qualquer sinal de fraqueza representa derrota total. O luto é uma necessidade humana que tem tido dificuldade em encontrar espaço público, não se fala sobre ele, e também os antigos rituais já não parecem mais servir. Talvez seja isso que me interessa tanto o tema do romance quanto as narrativas sobre a morte: ambos precisam inventar continuamente novas possibilidades de narrar.
Assim, não é sobre a morte que quero falar aqui, mas dos modos de fazer sagazes do romance. O pai da menina morta escreve e simultaneamente se vê diante da incapacidade de escrever, e ele é franco ao falar consigo mesmo: “Não se esqueça, você não é um romancista. Você nunca será o Bataille. Você é pudico. E não consegue escrever mais do que parágrafos curtos e desconexos” (p. 117). Nas oficinas que dou, uma reclamação frequente dos alunos é a falta de fôlego para escrever coisas mais longas. Na verdade, tenho uma grande admiração pelos concisos, pelos de fôlego curto, porque eles têm a habilidade de dizer em poucas palavras, habilidade que eu mesma não possuo, eu que sou romancista que mergulha em apneia e tem que ficar cortando as inutilidades depois. Não me impressiona que foram dois poetas – Danielle e Diego – que primeiro me indicaram o livro: seres da precisão conhecem seus congêneres.
Também é relatada a experiência da impostura na hora em que se escreve sobre o que não se pode dizer: “As vítimas não podem mais falar, os livros são todos eles escritos por impostores. Experiências de segunda mão” (p.157). A escrita como cura ou resposta para o luto também é questionada: “Escrever me cura. /Estou sendo honesto?” (p. 45). Tantas vezes o narrador também se coloca em lugar de aporia, escrevendo um romance que parece não ter objetivo, em que os acontecimentos parecem não se encaixar e diz para si mesmo: “Não será aceita essa sua tentativa patética de se matar simbolicamente em um romance. A fuga para o sexo também não vai funcionar. Não há cura para você e já se esgotaram todas as apelações de defesa possíveis” (p. 140). Ele julga, todo o tempo, a própria escrita, em uma sensação de um pensamento e escrita que acontecem ao vivo: “É uma dor que consome de forma fria e lenta. Mas pelo menos eu sei que eu vivi. Não seja ingênuo, viveu o quê? No vácuo os clichês não servem para nada” (p. 168). Para falar dessa morte, é preciso passar por outra coisa que não está lá.
Escrevi tudo isso para dizer que, às vezes, queremos narrar uma história e sentimos que não temos recursos (literários, técnicos, emocionais) para escrever o que deve ser escrito, e muitas vezes a gente encara as nossas limitações apenas como um problema. Na verdade, o que este livro traz a quem escreve agora é que as nossas limitações podem, na verdade, ser a nossa solução. Quem começa a escrever pode ser completamente absorvido por uma sensação de impotência ao se perceber que não consegue produzir muitas páginas de um romance “tradicional”. Muitas vezes, para encontrar a melhor forma de fazer, é preciso ir aonde a gente erra, aonde a gente se destrambelha, aonde a gente se deixa levar pela linguagem, por mais que esse espaço seja minúsculo e não faça sentido inicialmente. Não é uma coisa do espaço do racional, mas da intuição e da tentativa e do erro. Vejam bem: se a morte tira o fôlego de um narrador, se a morte dá a ele a loucura de estar vivo diante de um acontecimento impossível que se torna rela, então um livro de fôlegos entrecortados e migrantes faz completo sentido.
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Laura Cohen Rabelo publicou os romances História da Água (Impressões de Minas, 2012) e Ainda (Leme, 2014), o livreto de poemas Ferro (Leme, 2016) e o romance Canção sem palavras (Scriptum, 2017). Mestre em estudos literários pela Faculdade de Letras da UFMG, é idealizadora e coordenadora do projeto Estratégias Narrativas, onde ministra cursos e ateliês de produção literária. Faz parte da coordenação do selo Leme da editora Impressões de Minas.