No umbigo do mundo: Fissuras, de Laetitia Jourdan

25 de junho de 2019 - Laura Cohen

“O início da ficção está no mundo”, leio essa anotação no meu caderno, feita durante uma fala do Augusto Massi sobre o Otto Lara há algumas semanas. Eu estava pensando em como começar a escrever sobre Fissuras, livro da Laetitia Jourdan que será lançado no próximo sábado na feira Textura, e essa frase parecia falar muito do processo de escrita da autora.

Testemunhei os processos de Laetitia, e li as primeiras versões dos textos que compõem este livro, já que ela foi participante do meu ateliê de escrita aqui nas Estratégias Narrativas, tornando-se ela também uma professora da casa. Acabamos ficando amigas e, hoje, somos quase vizinhas. Falo isso porque, de alguma forma, estive espacialmente imersa nesse mundo com ela, um processo que envolve a cidade e o bairro que habitamos, passei pelas mesmas esquinas, subi pelos mesmos elevadores, atravessei à pé os mesmos viadutos e todos esses espaços significavam coisas diferentes para mim do que Fissuras traz.

Enquanto meu olhar para a cidade é distraído e prático (como a maioria das pessoas), Laetitia Jourdan tem um olhar clínico e político para as coisas, para a categoria-espaço que, para mim, é um domínio difícil. Daí, surgiram seus personagens, em maioria seres urbanos ou seres não-urbanos que se posicionam no espaço complicado da metrópole. Fissuras, para mim, é um livro sobre gente vivendo junto no umbigo do mundo: carros, ônibus, frutas, esquinas, baratas, higiene dental, drogas, moradia desigual, as próprias casas, o medo, a falta de conversa, casais em crise, manias, o barulho e o silêncio. Me lembro aqui de algo que ouvi o Lourenço Mutarelli dizer certa vez: uma das melhores maneiras de entender profundamente um assunto é escrever um romance sobre ele. É através da ficção que a natureza-antropóloga da autora estuda seu objeto humano, e nessa leitura o compreendemos com um órgão mais sensível do que o entendimento racional.

O que une esse conjunto de textos é justamente essa fissura espacial, dentro e fora dos corpos. O filtro da ficção é mais generoso, abrandando aflições e transformando o perigo dilacerante da tragédia em um humor um pouco culpado: no fim da fissura, existe um riso. Um riso que às vezes é um riso de nervoso, ou um riso de alívio, ou até mesmo um riso de identificação. Aqui vamos rir de um suicídio e de um casal que briga, porque também somos nós os suicidas e nós também somos o casal que briga.

Há outro fato curioso que observei no processo criativo de Laetitia Jourdan: ela nunca desiste dos textos que ela escreve (perdoem o trocadilho: é uma escritora fissurada). Sou contra isso de professor de ateliê de escrita dizer para os alunos: “esse texto não presta, joga fora”; essa é uma atitude preguiçosa que acaba com as possibilidades infinitas de uma ideia em processo, objeto sagrado. No entanto, há textos que, a princípio, eu digo para os alunos “esquecerem” um pouco, para retomarem em um segundo momento.

O primeiro texto do livro, Eu, foi um texto que pedi para Laetitia esquecer por um tempinho. Quando ela o levou para a aula, tanto eu quanto as colegas ficamos chocadas, pois se tratava de um tema muito sensível (se eu disser o tema, vai ser spoiler e vocês não vão gostar) de forma muito crua e, talvez, até mesmo cruel. Laetitia, a fissurada, não desistia dos textos difíceis e dos temas difíceis, ia se afundando nos textos até conseguir um resultado satisfatório. De textos em prosa, eles se transformavam em poemas, às vezes depois retornavam à prosa metamorfoseados. Fissuras tornou-se um livro de contos curtos: entendo como conto a narrativa ficcional breve, sem formato definido e que contém em si uma multiplicidade de fazeres. Mas tem poema que conta história e tem prosa poética, honrando a variedade possível do gênero conto.

Havia certa inocência fundamental com a qual ela tratava a dificuldade e a polêmica na escrita, uma insistência em falar disso, e todo mundo ficava incomodado. Para piorar: a gente se incomodava com o nosso próprio incômodo. Acho que essa inocência que cria a fissura no livro: as fendas e as aflições que os textos provocam têm uma pureza paradoxal, por ser uma pureza questionadora, como olhos jovens ou estrangeiros que põe em cheque aquilo que temos como comum. A partir da leitura, algo se racha e a gente muda a maneira com a qual a gente atravessa a rua, liga o carro, chupa uma laranja, mata uma barata.

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Fissuras será lançado no dia 29/06 na feira Textura, que acontece no Agosto Butiquim, Rua Esmeralda, 298, bairro Prado - Belo Horizonte/MG, a partir das 11h.

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Laura Cohen Rabelo publicou os romances História da Água (Impressões de Minas, 2012) e Ainda (Leme, 2014), o livreto de poemas Ferro (Leme, 2016) e o romance Canção sem palavras (Scriptum, 2017). Mestre em estudos literários pela Faculdade de Letras da UFMG, é idealizadora e coordenadora do projeto Estratégias Narrativas, onde ministra cursos e ateliês de produção literária. Faz parte da coordenação do selo Leme da editora Impressões de Minas.

Laura Cohen é escritora. Formada em letras e mestre Estudos Literários pela UFMG, publicou os romances História da Água (Impressões de Minas, 2012) e Ainda(Leme, 2014) e Canção sem palavras (Scriptum, 2017), Caruncho (no prelo, impressões de minas, 2022) e as plaquetes de poesia Ferro (Leme, 2016) e Escrever é uma maneira de se pensar para fora (Leme, 2018). Seu romance Caruncho está com lançamento previsto para o segundo semestre de 2021. Foi vencedora do segundo prêmio de literatura Universidade Fumec, em 2011, e em sua edição de 2009, obteve o terceiro lugar, publicando nas duas edições da coletânea Da Palavra à Literatura – Narrativas Contemporâneas. Faz parte da coordenação do selo Leme da editora Impressões de Minas, editando e preparando livros de diversas autoras e autores. Em 2019, participou do ciclo Arte da Palavra do Sesc, dando oficinas em diversas cidades brasileiras. (foto: Bianca de Sá)