Acho que nem precisa provar a estatística para fazer uma publicidade da leitura: “Dez em cada dez professores de português recomendam a leitura como uma boa maneira de escrever melhor”. Se houver algum professor de português que não concorda, favor protestar nos comentários. Eu não sou professora de português, mas todo mundo que coloca o pé aqui no Estratégias Narrativas, independente de ir desenhar, encadernar ou escrever, acaba com uma lista gigantesca de livros para ler, recomendados por mim ou pelas colegas. Depois da leitura em voz alta de um texto no ateliê de escrita, é bem comum alguém se adiantar e dizer “o seu texto me lembrou o livro X”, “O seu personagem me lembra tal personagem do livro Y”, “seu estilo é tão parecido com o da escritora Z”. Acho que não é possível escrever sem ler – e ler bastante.
Eu poderia fazer uma lista de motivos: porque é necessário conhecer o que escreveram antes de você, porque a gente precisa conhecer o que está sendo feito agora, para descobrir boas formas de contar a sua história, para não se sentir tão solitário escrevendo no silêncio do escritório, porque é gostoso ler. Mas ler o quê? A resposta mais fácil seria: ler boa literatura. Mas essa boa literatura é a coisa mais vaga que existe. Ela faz com a gente caia diretamente na armadilha do cânone, que é vago e flexível. O que é um cânone aqui em 2016 pode não ter sido cânone antes e pode também ser terrivelmente desinteressante para mim. A outra ideia – ler o que está sendo feito agora, conhecer novos autores, ler do autor que ganhou o prêmio Nobel até a sua amiga que acabou de publicar um romance numa editora independente – também não se aplica 100% bem porque há toda uma variedade de coisas surgindo a cada dia. Mas o que ler, afinal?
Acho que a escolha das leituras de pesquisa para escrever um romance depende somente do que a pessoa quer fazer e simplesmente do que a pessoa gosta de ler. A melhor pedida é ler o que me parece interessante agora, coordenando as tradições e as inovações, o que é condizente para a criação que você quer fazer no momento. Por exemplo: se eu quero escrever livros infantis, eu preciso enfiar a cara nos livros infantis (em tempo: em março vamos ter uma oficina sobre livros infantis aqui). Se eu quero escrever best-sellers, eu preciso mergulhar de cabeça nos livros mais vendidos e tentar entender porque o público gostou desses livros, além de entender todas as complicações do mercado. Se eu quero escrever um livro autobiográfico, preciso entender brevemente a história da biografia e quais pessoas fizeram isso. E mais: acho que hoje isso vai além da literatura – temos uma multidão de filmes, peças de teatro, músicas e trabalhos visuais que podem ter a ver com a história que estou escrevendo. A criatividade é um fenômeno de espelho, é bem importante entender a criação do outro para eu entender a minha criação.
Mas tudo tem limite. Como eu disse no post da semana passada, estou fazendo um livro sobre a mentira e a traição. Eu fiz um pequeno dossiê de livros e filmes que falavam disso, mas não precisei me aprofundar demais nele por um motivo: existe o caso de se aprofundar demais na pesquisa e desistir de escrever, ou enrolar demais para escrever. É preciso dar espaço para a espontaneidade das ideias e para o acaso, também presente no processo. Muita gente comete o erro de pesquisar demais – eu mesma sempre o cometo, e quando me dou conta do que eu fiz, páginas e páginas muito chatas e quase teóricas a respeito de um assunto que não é ficção, tendo de gastar ao infinito a minha tecla delete para afinar o texto. Às vezes nem chegamos a começar um livro, com aquela impressão terrível: Dostoievski já escreveu essa história, para quê eu, pobre mortal sem genialidade, vou escrever?
“Pois bem, como então funciona na prática a pesquisa em cima de outros livros para você, Laura Cohen?” A ideia é incorporar métodos, estratégias e ideias de um livro dentro do meu livro. Por exemplo: A parte final do meu livro é quase um thriller de suspense. Vou encerrar com meu personagem (que começa na primeira parte com dezessete anos e agora, na quarta parte, tem trinta) tentando investigar a respeito de um acidente que aconteceu com sua irmã mais nova enquanto ele estava no estrangeiro e descobre coisas horríveis que todos haviam escondido dele. Nisso, minha pesquisa envolveu da cena de reconhecimento de Édipo Rei de Sófocles, em que ele se cega ao descobrir a verdade a respeito de si mesmo, e resolvi também assistir alguns thrillers de suspense.
Nesse fim de semana, assisti o filme O presente (tem no netflix – viu? Até o netflix pode te ajudar a escrever o seu livro se você assistir direito) e do meio para o final, há cenas brilhantes em que uma esposa investiga a respeito do passado do marido. A forma como ela vai perguntando ao círculo pessoal dele, da irmã mais nova que tem uma visão borrada do passado até um amigo de infância que estava lá quando o indizível aconteceu, é tão sensacional que eu resolvi copiá-la para dentro do meu livro – sim, a gente pode fazer isso, não é plágio, é pesquisa. Assim, o personagem vai perguntando ao círculo de amigos da irmã – dos que estavam lá e não se lembram muito bem do ocorrido até quem presenciou o acontecimento em si, que estava longe de ser um acidente. Mas este final vocês só vão poder saber quando eu resolver parar de ler tantos livros e me entregar completamente à escrita do romance...