Estou escrevendo esse texto por conta de uma reportagem que saiu no site da Piauí (“Nunca fomos tão cool”) que me deixou um pouco incomodada desde o subtítulo: “como os cursos de escrita criativa (e a internet) estão transformando potenciais escritores em emuladores profissionais”. Eu, na verdade, não ia escrever nada, mas a Eliza Caetano, a nossa professora de poesia & assessora de comunicação, sugeriu que eu me posicionasse e cá estou eu me posicionando. Não quero criar polêmica ou ofender o autor, isso não é uma resposta direta ao que foi escrito, mas achei legal falar um pouco do trabalho que estamos fazendo nas Estratégias e como ele é diferente de algumas coisas relatadas na reportagem, e em como nós acreditamos em cursos de escrita (criativa ou não).
O projeto Estratégias Narrativas surgiu por conta de uma pergunta que o meu professor de desenho me fez quando eu lancei meu primeiro romance: “se existe ateliê de desenho, porque não existe ateliê de escrita?”. A pergunta dele veio com uma proposta de eu mesma abrir o meu ateliê de escrita ali no ateliê Artenova. Como eu sempre me considerei uma boa leitora e crítica das coisas que os outros escreviam, comecei a estudar sobre cursos de escrita criativa (muito populares lá fora), fui criando um método e então comecei minha própria turma de ateliê de escrita, lá em 2013.
Ano passado, eu estava explicando a um músico (e professor de música) qual era o meu trabalho – um ateliê de escrita, que incluía aulas e preparações de originais para publicação – e ele disse em tom de brincadeira: “ah, mas você agora cobra para fazer o que as pessoas antigamente faziam no boteco?”. Esse comentário foi produtivo – as pessoas acham normal ter aula de música, acham normal ter aula de desenho, mas e a escrita? Cobra-se que o escritor seja autodidata, e quando a edição está pronta, lá na livraria, ninguém vê que por trás da publicação há toda uma estrutura editorial (e eu já escrevi sobre isso aqui). Existe, claro, aquela gama de escritores que são sim autodidatas, que jamais fazem ou farão oficinas de escrita, mas esses autores também passam por crivos de amigos leitores, de preparadores de texto e editores para que o livro saia pronto. Não é um trabalho que a gente faz sozinho.
Uma vez vi a Noemi Jaffe (durante uma oficina de escrita) dizer que a literatura é uma arte diferente porque ela usa como meio uma coisa que todos possuímos – a linguagem escrita, e pode, muitas vezes, basear-se e sustentar-se simplesmente pela linguagem falada ou recitada. De forma que, alfabetizada ou possuidora de linguagem, em teoria, seríamos pessoas que, potencialmente, escreveriam. Entretanto, entre uma pessoa ser alfabetizada e escrever/compor uma poesia ou um romance há um enorme trilho de conhecimento, erro, experiência e aprendizado. Eu tive esse trilho, estudei muito, li muito, ralei muito, e me irrita um pouco quando uma pessoa que eu não conheço me pede para dar uma lidinha rápida no que ela escreveu. Meu conhecimento me custou muito e a leitura, mesmo que rapidinha, é um trabalho.
Outra questão que podemos pôr na mesa é que a literatura é uma área muito elitizada, infelizmente, apesar de ser a arte mais barata de todas - no começo, basta papel e caneta. Um dos grandes problemas que recebo no ateliê são pessoas que se queixam que gostavam muito de escrever e depois pararam por censura, por dificuldade, por medo de errar, por ter gente falando que não pode. Boa parte das pessoas que abandonam escrita se compõe de gente que, se formou em letras ou jornalismo, o que é super paradoxal, porque na verdade a gente deveria sair desses cursos escrevendo. Mas saímos dos cursos na maioria das vezes com a escrita domada por centenas de regras que mais atrapalham do que ajudam. Muitos professores da faculdade de letras inclusive desencorajam que os alunos escrevam poesia/ficção/literatura, dizem que o espaço universitário não é para aquilo. Às vezes penso: talvez não seja mesmo, e por isso é importante haver espaços fora da universidade onde se discuta, faça, pense literatura, um espaço mais livre e afastado do cânone. Sou formada em letras e digo: conto nos dedos de uma mão os professores que me estimularam a escrever ficção ou simplesmente aprovaram o meu desejo ou me encorajaram nas dificuldades.
Na Letras, aproveitei bastante as leituras que fiz para me tornar uma escritora melhor, mas o meu ato na verdade pode ser considerado um tabu. Segui escrevendo porque preciso, mas tem muita gente com necessidade de escrita que deixou de escrever. O que gera, obviamente, infelicidade e desconforto. Uma tecla na qual eu bato muito em sala de aula é o desejo: Se você não tiver ou cultivar o desejo de escrever, não adianta nada o que você está fazendo. Se escrever é maçante, massacrante, melhor começar a entender por qual motivo escrever te faz mal. Nem sempre é agradável, às vezes a gente fica futucando ferida mesmo, mas passa, e terminar algo normalmente ajuda. Entender o desejo é o principal: o que você precisa escrever? O que você tem a dizer de importante, que só você poderia dizer?Outra questão: alguém não precisa ser um escritor "profissional" para escrever. As pessoas às vezes querem escrever um livro e pronto, problema resolvido. Tem gente que precisa da escrita, mas não necessariamente quer ser um autor. Posso citar um exemplo, o Binho Barreto: ele publicou um livro, o Perímetro urbano, com ajuda do Estratégias e da Impressões de Minas, mas ele se define, basicamente, como um desenhista. Entretanto, lá está ele no meu ateliê de quinta-feira escrevendo o segundo livro. Os processos são concomitantes.
A ideia não é que todo mundo escreva igual, mas que cada um escreva diferente, que cada um encontre a própria escrita, que é uma mistura de influências artísticas, gosto pessoal, sotaque, repertório de vida. A imaginação de cada pessoa funciona de forma diferente, e os nossos cursos servem para que encontremos a forma mais satisfatória de canalizá-la. Pessoas que tentam escrever coisas que nada têm a ver com o estilo delas, com as vivências delas e com as leituras delas normalmente tendem ao fracasso. Não existe fórmula mágica. Na reportagem, também é citado um professor carrasco, que manda os alunos escreverem todos os dias e lerem tantos quantos livros. Não acredito na figura do professor massacrante, nem se ele for professor de cálculo, de cerâmica ou de jardinagem: é uma relação improdutiva. Não é, para nós, função de um professor humilhar, dar ordens absurdas e exigir o impraticável a fim de moldar um autor, isso pode criar traumas piores do que já existem e com os quais temos que lidar no mundo lá fora.
Gosto muito de uma ideia de aula que a Julia Panadés sempre dá em suas oficinas: ela chama de “partilha do método”, em que mostra como funciona o próprio método de trabalho junto de artistas e autoras que a influenciam profundamente, e nos convida a partilhar desses métodos a fim de criar algo novo e nosso. Sempre gosto de fazer cursos de escrita criativa e arte para dar uma refrescada nesse sentido: o da multiplicidade de visões que podemos criar e alcançar e não ficar parada na minha mesmice de autora. Cada professor diz uma coisa diferente, às vezes dizem coisas opostas e isso funciona devido ao maravilhoso fato de que na arte não existe certo ou errado. Então, não podemos ficar cagando regra. Ou seja: quando estamos em um curso de escrita criativa (ou um curso de qualquer outra coisa) e prestamos atenção nas ferramentas que nos são oferecidas, não é necessário incorporar e usar todas elas. Muitas vezes, vamos lá para fazer o contrário, para questionar ferramentas propostas. Para dar um exemplo de cagação de regra, muitos escritores condenam o advérbio, dizem para evitá-lo. Acho que tem que ser de outra forma: olhe para o advérbio, preste atenção no advérbio, sinta no seu texto quando ele é necessário, quando ele não é, quais são as vantagens e desvantagens de usar cada palavra em cada situação.
Por fim, o mercado editorial e a publicidade que os escritores recebem: se o objetivo final é virar um escritor famoso (em vez de simplesmente escrever) olha, não compremos isso. O objetivo aqui no estratégias é escrever (e, eventualmente, publicar). No Brasil, a realidade do artista é difícil mesmo, mas a gente segue na luta e não na lamentação. Não temos uma população leitora, infelizmente, os livros ficam caros porque o processo de edição e impressão é caro, recebe pouco estímulo. Mas detesto essa lamentação, porque tem muita editora pequena maravilhosa, que às vezes nem funcionário tem direito, causando um super impacto e publicando livros ótimos de gente que está começando na cara e na coragem. Sou uma das editoras do Selo Leme e digo: dá trabalho, é caro, mas vale. Eu tive que pagar pela impressão de dois dos três livros que publiquei, e o quarto vai me custar uma grana também. O repórter também fala do preço das oficinas, mas tem muita oficina gratuita em Belo Horizonte. Por exemplo, a oficina que eu e Flávia Péret daremos para no L.A.P.I. e algumas oficinas que aconteceram no ano passado com Noemi Jaffe, Alberto Pucheu e o João Anzanello Carrascoza do evento Ciclos de Convivência Literária, para citar dois. Outra coisa: nenhuma mulher foi citada como ministradora de oficina na reportagem, pouquíssimas mulheres autoras foram citadas e as oficinas mais legais que fiz com certeza foram de mulheres – por exemplo, a própria Julia Panades, a Angélica Freitas e a toda essa equipe super legal do estratégias.
Não acho que todo mundo que quer escrever deve fazer uma oficina, tem gente que não precisa mesmo, e que realmente não precisa, se resolve rapidinho com seus editoras. Mas aqui nas Estratégias acreditamos nas oficinas e na partilha do texto como uma forma de catalisar e desmistificar processos de criação.
Laura Cohen é escritora e criadora do projeto Estratégias narrativas. Mestre em estudos literários na faculdade de Letras da UFMG, publicou os romances História da água (2012) e Ainda (2014), e o livreto de poemas Ferro (2016). É uma das coordenadoras do selo literário Leme, editando vários livros de prosa e poesia.