[o carimbo precioso com a cara do Machado é da Polvilho Edições]
Por Laura Cohen
Uma das melhores coisas que fiz na faculdade de letras foi um seminário em que lemos, durante um semestre, os nove romances do Machado de Assis. A cada duas semanas, terminávamos um a um dos nove livros na ordem em que eles foram escritos. O professor da literatura brasileira, Marcos Rogério Cordeiro, conduzia a discussão sobre os textos de forma variada: de leituras marxistas, passando pela análise profunda da diversidade psicológica dos personagens, entendendo as influências que Machado recebia e usava na escrita em procedimentos aleatórios, contamos até mesmo uma leitura alegórica de Quincas Borba. Aprendi muito nesse processo, tanto como leitora quando tomo escritora. De tudo, duas lições foram as mais importantes: 1) a teoria da literatura sempre se encontra dentro do texto literário e não o contrário, e a leitura do texto literário é o principal no processo de análise; 2) o Machado de Assis tinha uma espécie de projeto literário: seus livros são todos simultaneamente únicos, mas profundamente conectados a uma linha de pensamento e representação.
Outra coisa era que Machado de Assis escrevia e publicava sem parar. Seus quatro primeiros romances foram publicados numa sequência de anos pares: 1872, 1874, 1876, 1878. Entre a publicação destes romances, há poemas, contos, peças, artigos, críticas... Vi, em primeira mão, que o primeiro romance do Machado é muito ruim, e mesmo sendo bem ruim, havia sinais do que ele faria em seguida, sementes de um processo que se firmaria ao longos dos anos. Comecei a entender como ele parecia aprender com a própria escrita, encontrando no fazer uma originalidade. Machado, neste processo, explorou muito formas diversas: escrevia em primeira e terceira pessoa, se apropriava de procedimentos de escrita de outros autores, investia no colorido dos personagens, inventou um narrador defunto, e o seu último livro, Memorial de Aires, consiste num diário de um personagem presente em um livro anterior, Esaú e Jacó. Ler tudo de uma vez, entretanto, me deu a sensação de que a obra de Machado poderia ser lida como um livro só: ele criou um universo único do Rio nos fins do século XIX, começo do século XX, um mundo vivo, que pode ser perfeitamente habitado e enxergado através da leitura de seus romances.
Quando as pessoas entram no ateliê, uma das primeiras coisas que a gente discute é a criação de um projeto de escrita. Um projeto de livro pode ser um livro só ou toda uma gama de livros e textos diversos. Mas para criar um projeto de escrita, é necessário que esta pessoa conheça, pelo menos um pouco, a própria escrita, entendendo influências, gostos e desejos. Muitas vezes, vejo participantes tentando escrever em estilos mais elevados, numa formalidade falsa que na verdade nada tem a ver com o caráter da pessoa, como se a literatura só se prestasse ao que há de mais sublime e formal. O contrário também acontece: muitas vezes, uma pessoa faz muita gracinha na escrita sem se dar conta que poderia adquirir um tom mais sério. Quem está começando sempre se agarra a lugares comuns, a discursos pré-forjados e está tudo bem começar assim: temos que ter um bom material para entender o que é de cada um e o que não é, entender o que é a linguagem própria e o que é simples imitação.
Se ainda houver muitas dúvidas sobre a identidade ou uma falta de ideias a respeito do que fazer – travas, brancos, crises – eu tento sugerir exercícios que ajudem a pessoa a encontrar aquele processo usando procedimentos que penso ter a ver com a identidade da escrita de cada um. Quando a pessoa encontra um caminho, podemos percorrê-lo com boa maleabilidade, apesar de ser uma maleabilidade que descobri ser limitada. Cada autor persegue, durante a vida, um número limitado de temas e interesses, e mesmo que estes mudem, eles mudam seguindo uma identidade própria de cada autoria. O próprio Machado mudou radicalmente em um dado momento, ao escrever Memórias póstumas de Brás Cubas. Entretanto, como eu já disse, nos livros anteriores percebemos sementes do livro que vem posteriormente...
As intenções do autor podem ser planejadas ou não planejadas. Planejadas: quando escolhemos um tema, imagens, tramas. Não planejadas: quando, ao reler criticamente o texto ou entregá-lo ao leitor, percebemos ali no conteúdo uma interpretação que não foi intencionada em primeira instância. Chamo ainda de projeto de escrita todas estas coisas que escolhemos racionalmente, e depois, estas coisas não intencionadas podem ser lidas como potência para seguir o a escrita. Mas, no fundo, é só uma parte que a gente controla: o que amo sobre o ofício da escrita é que a gente nunca sabe muito bem aonde aquilo vai chegar nem exatamente o que a gente está fazendo. Não é racional. Começar um romance é não saber o seu fim, começar uma poesia é não saber o resultado final.
Acabei de ler o último romance do Lourenço Mutarelli, O grifo de Abdera,* e lá dentro há uma frase que tem muito a ver com o meu projeto de escrita: “Os livros são a tentativa do autor de refletir profundamente sobre determinada questão ou tema”. Sempre que vou começar um romance, às vezes antes de ter um enredo em mente, penso em um tema da vida humana para ser explorado. Gosto de grandes temas de estudo: o primeiro livro que escrevi, História da água, foi sobre relações familiares. No Ainda, o meu romance-novela do qual eu não gosto muito (prometo um post sobre isso futuramente), eu queria escrever sobre a relação vertiginosa entre o presente e o passado, e principalmente sobre o fantasma da permanência. Escrevi um romance durante uma viagem Israel (vamos torcer para que eu o consiga lançar em 2017) que falava sobre o sentimento do ódio. Estou escrevendo um livro sobre a traição, que também se tornou um romance sobre a mentira e a falsidade. E ando tomando notas para escrever um pequeno romance sobre a fé. É bem assim: escolho temas, crio personagens e faço os personagens circularem nos conflitos gerados por estes temas. Entretanto, quando eu começo a explorar um romance, percebo que dentro dele há um monte de ideias afins que vão se complementando, adquirindo um ar de história infinita que imita a vida real.
Existe uma coisa engraçada sobre alguns autores nessa falta de controle do próprio texto, entretanto. Em uma entrevista, perguntaram à Beatriz Bracher sobre os livros dela sempre terem um personagem que escreve – um escritor, um estudante, um jornalista, e ela respondeu que nunca tinha percebido. O Daniel Galera tem a mesma questão com cachorros: uma vez vi ele dizendo (não vou lembrar onde) que sempre aparecia um cão no texto, e ele nunca pensava nisso, de repente o cão estava lá, ocupando uma cena. N' O Grifo de Abdera, que é um romance de Mutarelli sobre o próprio fazer literário, o narrador explica como ele sempre escreve o mesmo livro:
"Acho que já falei que todos os meus livros são o mesmo. É, de alguma maneira, sempre a mesma história. Um homem, que tem sempre a minha idade, sofre algo que afeta de forma irreversível a sua vida. A história geralmente começa pouco antes dessa mudança e o acompanha durante um período. Até ele morrer ou a morte ser iminente"
O Machado também tem essa questão de repetição: ou os personagens já são ricos, ou ganharam uma herança. E eu enfrento o mesmo problema com o tema da música: sempre que eu escrevo, há um personagem músico. Já tive regente, violoncelista, flautista, violonista. No livro que estou escrevendo, me proibi de colocar músicos, mas sem que eu pudesse controlar, surgiu uma cantora lírica, uma contralto meio enlouquecida que vai fazer o inferno na vida do personagem principal. No fim, resolvi dar uma chutada no pau da barraca e admitir isso, que o ambiente musical me fascina, que nele há tramas preciosas, rupturas catastróficas, alegrias e conflitos dignos de serem escritos. Assim fica o projeto de escrita, entre o planejado e o espontâneo: mesmo que a gente funde todos os esquemas e desejos, há algo inconsciente no ato de redação, atos falhos, vivências, cenas eternas, um trabalho entre o racional e o sensível e o secreto, o que faz de escrever um trabalho da ordem do quase incontrolável.
* O grifo de Abdera, Lourenço Mutarelli. Cia. das Letras, 2015.
Laura Cohen é escritora e criadora do projeto Estratégias narrativas. Formada e mestranda na faculdade de Letras da UFMG, publicou os romances História da água (2012) e Ainda (2014), e o livreto de poemas Ferro (2016). É uma das coordenadoras do selo literário Leme, editando vários livros de prosa e poesia.