Seu Vicente não existe é um livro de textos que já foram escritos há algum tempo. Consistia em um blog que Carina e Luciana, filhas de Seu Vicente, mantinham para relatar casos do pai delas, um senhor bastante peculiar. Do mundo digital, os textos que lá circularam foram editados, alguns inéditos foram adicionados e tudo se transformou em livro. Estou bem feliz, porque era um desejo que eu, leitora e editora, sempre tive a respeito do projeto, porque considero os textos lá escritos profunda e essencialmente literários, capazes do livro. Assim, achava que tinham que rodar o mundo de outra forma, talvez um desejo romântico e afetivo do contato da pele com a página, algo que tem muito a ver com os afetos de Seu Vicente, o personagem principal das narrativas.
É na multiplicidade que este livro existe: no posfácio, Flávia Péret afirma que o livro é um documentário capturado pelos olhos das autoras, filhas de Seu Vicente. Conversando com a Carina Gonçalves, co-autora de Seu Vicente não existe, ela me disse que não o considerava um livro de contos, mas um livro de anedotas. A definição de anedota possui algumas vantagens no entendimento das narrativas escritas pelas irmãs Gonçalves: o que chamamos de anedota, na antiguidade, tinha o sentido do não-entregue – algo que não foi escrito, que acabava por circular oralmente entre as pessoas. A anedota serve como certo instrumento da filosofia: uma história breve que provoca no seu expectador alguma emoção, muitas vezes o riso. Este riso provocado pela anedota é um riso filosófico, um riso que mexe com alguma coisa no nosso entendimento e na nossa consciência, um riso que faz aprender algo. No caso, quando rimos de algo que seu Vicente faz e diz, estamos rindo da nossa própria humanidade. Ainda, dizer que alguém “não existe” é comprovar o tanto que a pessoa é sui generis. A anedota se apoia em personagens e acontecimentos sui generis, na unicidade de um caráter que contém e resume todos os aspectos de uma doutrina filosófica.
Na anedota, temos a história tratada como real, mas não podemos saber se ela aconteceu de fato. Os contos aqui são transmitidos pelas autoras e não podemos saber se elas estão dizendo a verdade ou se estão inventando. Apesar de existir um Seu Vicente no mundo, entretanto, esse é o Seu Vicente de Carina e Luciana Gonçalves, o pai inventado pelas filhas e a filosofia do pai transmitida pela palavra das filhas.
As anedotas também contam a história de um contexto: um senhor idoso (e repleto de vida) existindo no século XXI e todos os seus percalços – o personagem Seu Vicente representa toda uma classe de pessoas nessas condições de vida, de forma que da biografia específica passamos ao universal. O tempo do nosso personagem principal não é o tempo de agora, mas um tempo passado, e ele tenta enfrentar esses novos tempos da melhor forma que pode. Somos Seu Vicente toda vez que enfrentamos um problema com a tecnologia. Falar da velhice, e da velhice específica de Seu Vicente, é um ato político no momento em que se representa um momento vida que normalmente pode ser desprezado ou posto de lado. O nosso personagem resiste e enfrenta: resiste em permanecer torcedor do América Mineiro, enfrenta o computador e o celular, não compreendendo muito bem, de seu ponto de vista distante do senso comum, algumas convenções e questões do nosso tempo. Voluntarioso, Seu Vicente dribla o mundo: passa pontos de sua carteira de motorista para a carteira da filha (em uma cena hilária) e pinta o cabelo de diversas cores.
Outra característica filosófica de Seu Vicente é a sinceridade, que tem um nome na filosofia: parrésia – dizer o que pensa, sem medo de julgamentos, assim como fazia Diógenes de Sínope, personagem filosófico cuja existência também se transmite por anedotas. Seu Vicente se recusa a dar carona para gente feia, diz que aquela música do Jamiroquai parece a música da hidroginástica dele e aposta não no time que ele quer que ganhe o campeonato, mas no time que vai ganhar porque ele só quer o dinheiro. A parrésia de Seu Vicente não é para ferir, mas uma parrésia da espontaneidade: a resposta rápida que esse personagem pode dar é a resposta mais sincera e que nos ensina algumas coisas. Ao mesmo tempo, ele é capaz de fingir que não gosta de certa comida que uma das filhas fez – e deu muito errado - para não ferir os sentimentos dela.
As autoras demonstram pleno domínio da narrativa breve: dizem o máximo com o mínimo, sem gastar palavras (ou saliva?). Cada conto é lido numa batida de olhos – a leitura breve sempre provoca um susto pela velocidade em que se dá problema e resolução, com surpresa no final. Maneira simples e oral: a forma de se contar um caso em um bar, em uma esquina, em um ponto de ônibus se conserva aqui na página e muitos dos contos são postos em simples forma de diálogo, sem a necessidade de intervenção de um narrador. Podemos visualizar a história e os falantes com muito pouco. No fim do trabalho de edição, as duas também tiveram o trunfo de arredondar as narrativas, de forma que, se não for enunciado, não sabemos qual das duas é a autora. Gosto muito de livros escritos em dupla que dão a impressão que foram escritos por uma mão só, uma mão cheia de afeto.
O lançamento será na Feira Textura, dia 23 de setembro a partir das 11h no Agosto Butiquim (Rua Esmeralda, 298, Prado, Belo Horizonte/MG). Esperamos todo mundo lá!
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E aqui vai um gostinho de Seu Vicente não existe:
Quitutes
— Por que você não vem em casa hoje? Sua irmã vai dormir aqui.
— É uma boa, papai.
— Ok, venha. Falarei com a sua mãe para fazer quitutes, mas ela não vai fazer.
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Laura Cohen é escritora e criadora do projeto Estratégias narrativas, onde dá ateliês de escrita e leitura. Mestre em estudos literários na faculdade de Letras da UFMG, publicou os romances História da água (2012) e Ainda (2014), e o livreto de poemas Ferro (2016). É uma das coordenadoras do selo literário Leme, editando vários livros de prosa e poesia.