Um legado é sempre legal?

13 de dezembro de 2017

[Diogo da Costa Rufatto]

Vivemos num país essencialmente católico. Tudo bem que essa afirmativa possa não ser mais verdade em relação à palavra católico em si – dado o assustador crescimento das igrejas neopentecostais –, mas ainda é verdade que imensa parte dos brasileiros é educada no catolicismo. Eu mesmo fui, o que em parte justifica eu não saber, por exemplo, o que é um kibutz, madrich/madrichá/madrichim, e o banho mikvah. Isso, porém, não é um problema para o leitor de Canção sem palavras, da Laura Cohen Rabelo, que tive a missão de revisar (confesso que não foi fácil; mas só não foi porque já chegou em minhas mãos tão bem escrito que precisei dobrar a concentração para não me deixar levar pela mão da Laura por Belo Horizonte, Buenos Aires, Paris, alguns lugares de Israel e, sobretudo, Jerusalém).

Uma mão certeira, a da Laura, sobretudo por ter escolhido escrever no tempo presente. Se compararmos com o cinema, é como se a Laura fosse a diretora e nós os cameramen registrando a história de Maria Teresa. Vivemos a narrativa junto com a personagem, cena por cena, crise por crise, e nos angustiamos e nos aliviamos, sentimos frio e calor, tesão e quem sabe até vislumbramos, nós homens, o tal do ciclo menstrual.

Agora que já fomos apresentados a essa personagem, passemos a chamá-la de Matê, como ela prefere. Uma personagem que recebeu um nome ao nascer, mas escolhe ser chamada de outra coisa. Uma personagem que recebeu uma religião ao nascer, mas viveu diferente. Talvez uma versão judaica do nosso tão comum “católico não praticante”, Matê participa de um programa de birthright para conhecer Israel, e é junto com ela que aprendemos, entre vários aspectos do judaísmo e da (re)construção de Israel, o que é um kibutz, quem são madrich/madrichá/madrichim, e o que é o ritual do mikvah. Rituais são algo muito antigo que parece que sempre existiu, ressalta a Laura numa passagem do livro, mas que foram inventados em algum momento da história. Bem como a palavra deus. Senti o incômodo de um revisor e suas regras com a ausência da maiúscula ali, então indaguei à Laura, que me respondeu que o deus de Matê não é Deus, nem o judaico, que é D'us, pois não pode ser representado. A Laura escreve deus, facebook, google, tylenol (ninguém está me pagando, diz ela) e se insere numa tradição contemporânea (me perdoem o paradoxo) de mostrar que hierarquias foram construídas e podem ser modificadas.

Além disso, Matê recebeu ao nascer uma espécie de herança familiar: a relação com o violão. De criança, ela aceita e assume com avidez essa inclinação, tornando-se um prodígio precoce. Toda a sua vida se constrói ao redor da promessa da grande violonista que ela já é, inclusive um relacionamento conturbado com o seu parceiro de duo, Arie. De brinde, a Laura nos apresenta uma playlist para embalar nossa leitura!

Com Matê, vemos ainda que um legado, uma inclinação, um talento não são suficientes. É preciso muito esforço, suor, dedicação. É preciso renúncia, é preciso desejo. E se, depois de tudo isso, a gente uma hora der uma de Raul Seixas e começar a se perguntar: e daí? Ecoa a frase, talvez sentença, da mãe de Matê: “[você] vai se casar com um judeuzinho e seus filhos vão crescer sem falar português”.

Mas esta é uma canção sem palavras.

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Diogo da Costa Rufatto nasceu em Passo Fundo, Rio Grande do Sul, no ano da queda do muro de Berlim. Sentindo-se um gaúcho não gaúcho, mudou-se para Belo Horizonte, Minas Gerais, e foi chamado de escritor mineiro não mineiro. Nesse espaço identitário, também cabem as profissões de revisor, tradutor e intérprete de língua inglesa e francesa. Publicou o livro de poesia Do pó (2016) e sua sátira Do pau (2017) pela Impressões de Minas, e o livro de contos O livro fúcsia - da linguagem tripartida (Urutau, 2017).