[por Laura Cohen]
Em um dos deliciosos programas de rádio Violão com Fábio Zanon transmitidos pela Rádio Cultura de 2006 a 2009, o violonista e apresentador Fábio Zanon fala uma coisa que eu adoro: é frequente um especialista em uma área ficar mais feliz com uma conquista em uma área completamente alheia à sua atuação do que com algo que faz profissionalmente. Por exemplo, um músico pode ficar mais feliz em preparar um risoto ou terminar uma maratona (acho que são exemplos que o próprio Zanon dá, não consegui localizar o programa para ouvir de novo) do que terminar um concerto de forma satisfatória.
Este processo começou a se repetir em 2014, durante a edição dos poemas do amigo Guilherme Hargreaves, músico brilhante e autor do livro Diminuto lançado pelo nosso Selo Leme. Lendo e editando os poemas do Gui, fui mordida por um bicho do poema e começou a me dar uma coceirinha diferente, uma vontade de imitar o fazer dele assim como sempre mimetizo os fazeres de escritores que admiro. Eu estava vendo a poesia surgir de dentro, e do meu ponto de vista, pareceu muito mais agradável o fazer da poesia do que o fazer do romance.
Através da anotação sistemática, acabei desenvolvendo uma memória muito boa para imagens, falas, dados, momentos, sons. A memória boa às vezes é um tanto insuportável – lembrem-se de Funes, o memorioso de Borges, que jamais se esquecia – e de alguma forma escrever é uma forma de me livrar dessa memória cleptomaníaca. Entretanto, o romance é uma vivência. Escrever romance é lento, demorado, cria ranço. Por mais que seja prazerosa a convivência com uma história, conviver e tolerar um texto por anos pode dar origem a um relacionamento abusivo entre autora e palavra. A escrita do romance surge de conflitos reais meus e do interesse profundo sobre um tema humano, numa mistura de vida e invenção... então o processo exige bastante paciência. Ainda por cima, custo a me desapegar de um romance. Fico querendo mexer mais e mais. Morro de saudade de ter escrito o meu primeiro livro, o História da Água, e sempre me vejo desejando voltar para aquele mundo, viver com aqueles personagens. Um romance pode ser escrito enquanto durar a vida.
Depois de editar o Gui, escrever poesia, para mim, foi uma felicidade. Este trabalho, apesar de exigir uma concentração diferente, certo estado de espírito atento e completo, é um troço que me dá um prazer rápido e breve, que se encerra logo e que resolve o problema com eficácia. Até editar é mais fácil, fico satisfeita mais rapidamente, e se acabo insatisfeita, a edição mais atenta pode ser feita depois. Muitos poemas podem ser feitos em paralelo, o romance se faz um de cada vez. A poesia me permite sassaricar mais, passear mais. Fico pensando agora se, diferente do romance, olho a escrita da poesia com menos seriedade e mais leveza, o que faz o desapego ser mais fácil.
Ferro, porém, não é um livro leve. Ele contém 11 poemas que escrevi entre 2013 e 2016, depois de estudar a mitologia das Penélopes de Ana Martins Marques, entre muitas aulas da pós-graduação na Letras (alguns poemas são dedicados a colegas e professores, nascidos de coisas que eles disseram), o desastre criminoso de Mariana do ano passado e um desafio que fiz com meu amigo André Malta (poeta, homerista e grande incentivador dos versos) em que deveríamos escrever um poema por dia durante trinta dias (escrevi apenas dezessete, cortei muitos). A escrita para mim sempre surge de alguma frustração ou deslumbramento, algo que está errado ou algo que funciona e me espanta, algo que me desagrada profundamente ou me deixa desconcertada. Escrever não é falar daquilo, é estudar aquilo. Penso que este livrinho é estudo de algumas coisas do mundo que são feitas de ferro, duras, inflexíveis, derretidas somente a grandes temperaturas, mas que constroem o mundo, ou coisas que, como o ferro, compõe a hemoglobina do nosso sangue.
Olhando para o meu primeiro livro de poesias, estou com a sensação de que fiz um bom risoto. Normalmente eu fico bem infeliz perto dos lançamentos dos livros – achando que isto ou aquilo no livro está errado, ou com a impressão de que estou enterrando um morto, um processo longo, repleto de idas e voltas. Não sei se é porque estou amadurecendo, este é o meu terceiro lançamento de livro, mas estou me sentindo anormalmente feliz Pode ser também porque o projeto gráfico da Elza Silveira ficou lindo, porque na quarta capa tem um texto do Diego Vinhas, porque tem carimbo, porque o livro é rosa pink ou porque ele vai ser lançado em um evento muito sensacional, a Feira de autoras, que vai ser no domingo próximo, dia 18/12 na Casa Imaginária. Estarei lá de 10h às 13h, servindo meu risoto para quem quiser comer, mas antes deixo aqui uma provinha:
a chuva do indigente
é morto o homem que não nos pertencia,
o que esperava sobre as telhas de uma casa
e perdeu todas as coisas que tinha
as roupas do corpo, a terra em nada lavrada
mas nós não julgamos seus ossos brancos
que receberam a chuva do indigente
mas temos a bondade de nos esquecer deles
e de toda a carne que os escondiam
e quando uma mulher ou um rapaz
vir buscar a notícia de um homem sumido
ele será uma coisa que jamais terá existido –
um nome apregoado em voz estrangeira.