Em um dos longos áudios de WhatsApp com a Laura Cohen, eu falava da alegria que era escrever poesia, depois de anos insistindo na ficção. Ela, como sempre, autoritária (do bem), pediu que eu fizesse um texto para o blog do Estratégias Narrativas contando a minha descoberta e o meu modo de escrever poesia. Ajuizada que sou, obedeci.
I
Paro um pouco para dar o que sobrou do copinho de iogurte para a minha cachorra lamber. Ela vira a cabecinha para os dois lados procurando onde ainda há um resto de iogurte e eu observo como é lindo o movimento de girassol da sua cabeça. Tenho vontade de não guardar essa descoberta só para mim. Ainda que não importe a ninguém, quero compartilhar essa imagem, filmá-la com meu celular, contar a alguém, escrever um poema. Mesmo existindo e sendo, parece-me que a natureza ou os acontecimentos não se fixam tanto nas nossas percepções, ou passam despercebidos até que são transformados em outra coisa.
II
Foi traumático perceber que, mais do que contar histórias, eu queria contar instantes. “Por que você não escreve um miniconto então”? Porque meu desejo não era narrar, meu desejo era deixar lacunas onde nem eu mesma conseguisse entrar, era deixar espaço para outra coisa que não fosse só texto e compreensão. Queria que algo escapasse.
III
Foi traumático porque a poesia tem pouco lugar no nosso mundo utilitarista e mais uma vez faria algo inútil. Diga a alguém que está trabalhando em um romance ou em um conto. Agora diga que está escrevendo poesia. A diferença das vogais e da pontuação (Oh! e Ah…) é notável. Até que entendi que fazer poesia não está relacionado à utilidade, reconhecimento, mercado e fama. Poesia, e claro, qualquer forma artística, no momento da sua concepção habita a casa do desejo. E quando o meu está mais intenso, ele me pede para escrever poesia. Laura Cohen diz que escrever poesia é um ato de resistência e é isso mesmo. É resistir ao capitalismo e seus afluentes ainda que seja contando um momento tão prosaico quanto o de uma cachorra lambendo um copinho de iogurte.
VI
Meu primeiro poema originalmente era um texto em prosa, uma narrativa sobre um tio de alguém que veio a falecer. Laura, quando leu me provocou “e se esse texto fosse em versos?”. Apesar da minha descrença na sua proposição, modifiquei o texto promovendo um festival de cortes, até que o texto secou e ficou essencial. O conteúdo era praticamente o mesmo, mas a forma mudou o efeito do texto: o que era triste, solene e até moralista se tornou impessoal, cotidiano, comum e ouso dizer, um pouco fantasmagórico.
VII
Não. Meu primeiro poema foi escrito há dez anos em uma tentativa de imitar a Alice Ruiz, que conheci na cabeceira de um conhecido. Li o livro inteiro, que já não lembro o nome, em uma só noite e quando acabei já tinha um haikai pronto na cabeça. Mais do que uma tentativa de imitá-la ou entrar em contato com esse tipo de escrita (eu não lia poesia, muito menos hakai), essa leitura me deu uma nova possibilidade de expressão. Naquela época, não me interessava testar a elasticidade da linguagem, só queria experimentar afetos e expressá-los. Assim saiu o pequeno poema que traduziu o todo o conjunto daquela experiência:
40ºC
Nossas barrigas
coladas de suor
respiram juntas
Depois, mais consciente da nova ferramenta, escrevi outros haikais, mas logo perdi o interesse. Precisava encontrar o clique (logo explico) que desse consistência para a forma e deixei de lado minhas imitações de Alice.
VIII
Depois do poema sobre o tio, nunca mais quis saber de poesia, até que me propus a escrever uma narrativa sobre o que aconteceu nos sete meses de vida de uma menina antes de ser adotada. Na impossibilidade de narrar ou ficcionalizar a ausência nesses sete meses de vida, a solução apareceu em versos.
IV
Eliza Caetano, uma poeta e amiga, disse que poema tem que dar clique. Não se explica o clique, sente-se. Concordo, mas para mim, o clique também aparece antes do poema existir. Esse estalo vem na cabeça, vira a chave do pensamento e aquele pedaço de vida passa a insistir para ser codificado em versos ou frases. O estalo está nas coisas, nas conversas, nos livros, nos filmes, nas notícias, nas músicas, em outras poesias, nas aulas, no acaso, na rua, no ar. E o que ele provoca precisa ser escrito imediatamente antes que se perca. Obviamente, o poema não sai pronto como mágica ou como algo designado por uma divindade. Esse estalo não chega a ser uma inspiração, está mais para um despertar/ alerta/ disparo para tentar alcançar com palavras (mesmo sendo impossível) aquilo que clicou.
X
Me pergunto se alguns desses cliques ou estalos, antes da concepção do poema, não seriam as experiências estéticas nos mundos cotidianos que Hans Ulrich Gumbretch fala no artigo de nome homônimo. Talvez a experiência estética do banal me provoque a escrever, além do que me afeta para o mal ou para o bem.
XI
Poetas são acumuladores.
XII
Caetano Veloso, na canção Língua:
E sei que a poesia está para a prosa
Assim como o amor está para a amizade
E quem há de negar que esta lhe é superior
Escuto essa canção que me diz tanto de tantas coisas e fico em paz.
Poesia e prosa caminham fluidas assim como é o desejo.
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E depois de tanto falatório, dois poemas meus:
bagdad café
vasculho as fotografias das nossas últimas viagens
e não encontro vestígio do elefante que nos fez companhia
lembra-se dele no carro pelo retrovisor? por vezes nos sorria nervoso
por outras olhava ausente pela janela, perdido na paisagem seca
no avião, nosso elefante se sentou no meu colo. te pedi que revezasse
o peso comigo e você disse que eu já estava na janelinha
na selfie que tiramos os três juntos ele não aparece. deu espaço para o mar
– cortês da parte dele – sempre muito discreto. e a foto ficou linda. todo mundo viu o quanto nós nos amávamos. até você e eu
sempre havia um espaço entre a minha coxa e a sua. entre o meu peito e o seu que ele preenchia liquidamente com seu couro cinza. áspero mas eu gostava de acariciá-lo para sentir sentir lixar a palma das minhas mãos
(nem toda sensação agradável é boa)
La ciudad de Sylvia
uma pequena cidade de praia
é como a cidade de Sylvia
a menina do cabelo afro
a mocinha do café
a cadela Princesa
e os gringos vermelhos de camisa de botão e bermuda bebendo sangria
os figurantes das minhas férias
se repetem
por erro de continuidade
por baixo orçamento
ou apenas para me mostrar
o quão pequena é a cidade
faz-se o encontro casual ainda mais frequente
quase exterminando o acaso
ninguém sabe quem é Sylvia
e ela não se revela ao final deste filme
porque nem eu que escrevo
sei quem ela é
uma cidade que é de alguém
que talvez nem exista
é por certo uma cidade
as cidades não pertencem
nem aos seus moradores
nem aos seus visitantes
talvez aos seus mortos
no pequeno cemitério em cima do morro
observando o movimento sutil da areia
disseram que cidades são pessoas
mas insisto em visitar monumentos naturais e artificiais
a procura de Sylvia
no meio das dunas
eternizando minha passagem vulgar
em telas de cristal volátil
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Carina Gonçalves nasceu e vive Belo Horizonte. É formada em Publicidade e Propaganda, pós-graduada em Processos da Imagem e da Palavra na PUC-MG e cursou o taller de Cinema Autorreferencial na EICTV em Cuba. É coautora, com Luciana Gonçalves do livro de anedotas “Seu Vicente não existe” (Leme, 2017). Atualmente, ministra oficinas de escrita e trabalha como redatora. As inscrições para a sua oficina Escrevendo o cotidiano estão abertas! (foto: Bianca de Sá)