*as imagens do post são do livro Névoa e assobio, de Bianca Dias, ilustrado por Júlia Panadés. Relicário, 2015.
[por Laura Cohen]
Na última semana, aconteceu aquela maravilhosa feira de livros da UFMG – vários títulos com 50% de desconto, amigos levando malas para a universidade. Comprei muito pouco, apenas uns cinco títulos para mim e outros cinco de encomenda de amigos. Na feira, conversando com a editora Maíra Nassif da Relicário Edições, ela falou uma coisa interessante: desde quando ela começou a trabalhar com livro, perdeu um pouco o tesão por comprar tanto livro. Para mim é assim também, basta eu suspeitar que não vou ter tempo para ler alguma coisa que eu não compro. Entretanto, gosto muito de comprar livros novos e belos de gente nova que publica principalmente em BH, tanto que acabo indo para essas feiras de publicação independente com um dinheirinho contado para não me exceder.
É engraçado que, bem nessa conversa, acabei comprando o livro mais tesudo da banca da Relicário: Névoa e assobio, da Bianca Dias. Perguntei para a Maíra, sem saber do que tratava, se era um livro de poesias. Ela disse que estava mais para um depoimento (foi isso mesmo, Maíra?). Eu já sabia de Névoa e assobio pela minha amiga Julia Panadés, que estava fazendo as ilustrações, e acho que não dei muita bola a princípio – só ficou na minha memória a determinação da autora narrada pela Julia em fazer um livro lindo, exatamente do jeito que ela desejava. E ficou lindíssimo.
Névoa e assobio é um livro que acerta em várias questões que eu insisto. A primeira: a autonomia da autora em fazer um livro segundo o seu desejo, com ajuda de ilustradores e editores que compreendem e assumem também esse desejo. Nem vou falar mais disso porque já insisti demais no ponto nesse texto aqui.
A segunda: a questão do estilo pessoal e da transgressão dos gêneros. No começo da leitura, fiquei um pouco confusa: era um ensaio? Um testemunho? Um depoimento autobiográfico? Um diário? Uma história de vida? Aquela mania muito feia de tentar colocar o livro em caixinha e classificar escritas. O que Bianca Dias fez (acredito que não sem esforço) foi simplesmente encontrar o estilo Bianca Dias de escrever. Aceitar o que ela podia fazer da forma como ela podia fazer e ir em frente. Ela inclusive usa formas de frase que eu abomino, mas que no texto dela funcionam muito bem.
O que me pareceu mais interessante foi o fato de ela estar contando um acontecimento pessoal, e para isso, ela cita leituras variadas. Ela fala de si, mas para falar de si ela traz à baila Nietzsche, Lacan, Blanchot, mais ou menos da forma que apareceriam em um texto acadêmico. Mas este texto escapa o acadêmico, está com um pé na biblioteca, um pé na poesia e com as mãos na dor. Para falar da sua tragédia, ela não usa as próprias palavras apenas, mas usa elaborações dos outros – vai se apropriando dessas falas, quase como se tentasse encontrar veios de um sentimento que partilha o sentimento dela. Os textos formam pequenos blocos pela página, permitindo uma leitura oracular: abrir aqui, ler um parágrafo, ver um desenho; ir acolá, ver um bordado, e do outro lado da página, o verso do bordado.
O terceiro ponto: ela fala de coisas sobre as quais não falamos, mas sobre as quais é necessário falar. Quais livros da literatura mundial falam da morte de um filho e são narrados por mulheres? Eu não conhecia nenhum antes de Névoa e assobio. Quando ela escreve, e escreve justamente sobre esse acontecimento fatal, um filho que nasce e vive “uma vida inteira em cinco dias” (p. 19). Sei de algumas mulheres que viveram algo parecido, elas estão por aí, mas nunca li um livro sobre esse tipo específico de tragédia. Apesar de ser algo real, foi uma experiência inédita experimentar a fala da dor de uma mulher que gera um filho, e esse filho, depois de cinco dias, se ausenta para sempre. É uma dor que não consigo imaginar, mas da qual consigo partilhar e sentir empatia, e simultaneamente é uma generosidade destinada a quem já passou ou há de passar por essa mesma dor ou dor semelhante. E mais: ela fala de luto, um tabu que não deveria ser tabu, um discurso silenciado pela contemporaneidade, um silenciamento que tem nos deixado doentes.
Quarto e último ponto: trazer para a palavra é se salvar daquilo. Quando alguma pessoa que possui o hábito da escrita passa por uma tragédia, eu penso “mas ainda bem que essa pessoa escreve”. Acredito muito que a literatura apresenta uma espécie simples de salvação: não uma terapia ou um tratamento, algo menos do que isso – uma capacidade de elaboração muito delicada e específica, ou apenas um espaço livre e montanhoso para elaborar. No trabalho da escrita, no viver com a palavra, na necessidade de escrever que eu experimento, existe uma espécie de capacidade de transformar o horror em outra coisa. Como coloca a própria autora: “Diante de um vazio aterrador, agarrei-me numa fúria desejante e decidi fazer da morte algo vivo, uma tarefa que incluiu abrir mão do desespero e escrever. Nessa rasura fui encontrando um abrigo, um litoral” (p. 75) ou ainda: “Um livro é fazer falar, tratar pela palavra a potência do vazio” (p. 89).
A escrita não dá conta de tudo, mas ela dá conta de alguma coisa. Por isso que acho que Névoa e assobio é um livro defensor do viver com a palavra. A literatura nos ajuda a passar pelo mundo com menos solidão, com nossas formas de dizer as coisas e as nossas formas de ouvir as coisas. É trazer o escrito para a dor da vida e a dor da vida para a palavra.
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